REVISTA DO TRIBUNAL DE CONTAS
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RELATÓRIO DE AUDITORIA
N.º 10/2024 – FS/SRMTC

AUDITORIA AO CONTRATO-PROGRAMA
PARA O FINANCIAMENTO DO PROGRAMA
DE TESTAGEM RÁPIDA DA COVID-19

2024-10-23
Processo n.º 6/2023 – AUD/FS

Relator: Conselheiro Paulo Heliodoro Pereira Gouveia

 

DESCRITORES

CONTRATO-PROGRAMA / COVID-19 / FINANCIAMENTO / FUNDAMENTAÇÃO / PREÇO CONTRATUAL / PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS / PRINCÍPIO DA CONCORRÊNCIA / PRINCÍPIO DA IGUALDADE / PRINCÍPIO DA IMPARCIALIDADE / PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE / PRINCÍPIO DA TRANSPARÊNCIA / SERVIÇO DE SAÚDE.
 

SUMÁRIO

O que auditámos?

A auditoria incidiu sobre o contrato-programa para a promoção e coordenação de testagem por testes rápidos de antigénio (TRAg) para o vírus SARS-CoV-2, outorgado entre o Instituto de Administração da Saúde, IP-RAM (IASAÚDE, IP-RAM) e a Associação Comercial e Industrial do Funchal - Câmara de Comércio e Indústria da Madeira (ACIF) a 18 de junho de 2021.

O que concluímos?

Tendo em conta o âmbito e o resultado das verificações efetuadas, o Tribunal de Contas concluiu que:

  1. O Conselho do Governo Regional, por via da Resolução n.º 550/2021, de 14 de junho, determinou a celebração do contrato-programa entre o IASAÚDE, IP-RAM e a ACIF, outorgado a 18 de junho de 2021, destinado à “(…) promoção e coordenação de testagem por testes rápidos de antigénio (TRAg), para a SARS-CoV-2, aos cidadãos residentes na RAM e aos turistas durante a sua estadia na Região, que solicitem a realização dos mesmos nos serviços privados de saúde da Região que sejam associados da [ACIF] (…)”, cujas adendas culminaram numa execução máxima de 1 065 000 testes, pelo montante global de 15,975 milhões de euros, até 31/12/2022. A execução física do contrato-programa ascendeu a 1 028 492 testes e a execução financeira a 15 329 583,00€.

  2. O fundamento principal, aliás pouco relevante à luz da existência da Direção Regional de Saúde e do IASAUDE, que levou à escolha da Associação Comercial e Industrial do Funchal para executar o contrato-programa de testagem não correspondia à realidade.

    À data da celebração do contrato aquela Associação não representava a maioria das entidades privadas prestadoras de serviços de saúde, pois, após a celebração do contrato, aderiram à Associação 17 novas entidades que se juntaram às 8 sócias da ACIF. Deste modo, à contratação está subjacente um erro na formação da vontade do Governo Regional e do IASAUDE, na medida em que a decisão de contratar nos moldes observados foi formulada no pressuposto da existência de um elemento essencial que, afinal, não tinha correspondência com a verdade.

  3. Os termos em que foi definida esta contratação da associação privada ACIF por parte do Governo Regional enquanto órgão de administração pública e do IASAUDE, IP-RAM revelam o seguinte:

    1. desconsiderou-se a competência (administrativa e técnica) da Administração Pública regional na área da saúde pública, supostamente existente numa associação privada como a ACIF;

    2. a escolha da ACIF assentou em pressupostos de facto inexistentes e não teve a ver com a melhor prossecução do interesse coletivo;

    3. desconsiderou-se um conjunto de princípios fundamentais de atuação da Administração Pública, concretamente o princípio da concorrência, o da imparcialidade na vertente objetiva e o da igualdade de oportunidades, dado que a contratação da associação privada ACIF a beneficiou direta e injustificadamente e, ainda, porque só podiam aderir ao programa de testagem as entidades privadas prestadoras de serviços que fossem ou viessem a ser associadas da ACIF;

    4. a fixação inicial do preço compósito do serviço de testagem não foi fundamentada em critérios objetivos, nem resultou de uma dinâmica concorrencial, e tardou em adaptar-se à evolução do mercado, levando a que a RAM tenha suportado um custo maior (estimado em quase 800 000,00 €) do que o que resultaria se tivesse seguido, por exemplo, o regime de preços definidos pelo Ministério da Saúde;

    5. não foi dado suficiente cumprimento aos princípios da publicidade e da transparência, na medida em que (i) o clausulado do contrato-programa omitiu a remuneração (auto)atribuída à ACIF, impedindo a perceção do financiamento-extra captado por esta entidade meramente associativa e privada não mercantil, sem quaisquer competências legais e técnicas na área da saúde pública; (ii) o contrato-programa omitiu os termos da contratação das associadas e, bem assim, dos mecanismos de controlo e fiscalização da prestação de serviços; (iii) as peças principais do contrato (o contrato-programa outorgado, o Plano de Ação e as respetivas adendas) não foram publicadas no JORAM, o que limitou o respetivo conhecimento público e os eventuais escrutínios públicos.

  4. Por sua vez, os termos em que foi executada a contratação em análise demonstram que:

    1. foi concedida excessiva margem de autonomia à relação estabelecida entre a associação privada ACIF e as respetivas associadas aderentes para efeitos de execução do contrato-programa, fruto de uma posição muito pouco ativa do IASAÚDE, IP-RAM, o que permitiu que o executor determinasse certos aspetos e termos de forma totalmente inovatória face ao citado “contrato-programa de intermediação” totalmente suportado pelo erário público (a inusitada remuneração da ACIF, a estipulação do conteúdo dos contratos de prestação de serviços, entre outros);

    2. na prática, o IASAÚDE, IP-Região Autónoma da Madeira e o Governo Regional, com a sua pouca proatividade e postergação das competências técnicas e legais próprias, delegaram quase integralmente a fiscalização da qualidade dos serviços prestados pela ACIF na ACIF (entidade por natureza não imparcial; sem conhecimento, experiência e capacidade técnica para tal), não tendo desenvolvido quaisquer procedimentos administrativos autónomos de supervisão e fiscalização.

  5. A factualidade apurada indica ainda que o princípio da boa gestão, tanto na vertente administrativa (cfr. o artigo 5.º do Código do Procedimento Administrativo) como na financeira (economia, eficiência e eficácia cfr. o artigo 18.º da Lei de Enquadramento Orçamental e a Lei de Enquadramento do Orçamento da RAM), foi postergado na conceção e na execução do contrato-programa, com um principal e injustificado benefício: aumentou o património financeiro e a dimensão da ACIF, associação privada cujo dever principal é, na verdade, defender os seus interesses privados e os interesses comerciais dos seus associados, entidade privada associativa essa, aliás, sem melhores meios do que a Administração Pública regional da saúde pública (cujo dever principal é, sim, prosseguir o interesse coletivo de acordo com as regras fundamentais da legalidade administrativo-financeira decorrentes dos artigos 266.º da CRP, 18.º da LEO de 2015 e 3.º ss e 200.º ss do CPA).

O que recomendamos?

O Tribunal de Contas recomendou a cada um dos membros do Conselho Diretivo do Instituto de Administração da Saúde, IP-Região Autónoma da Madeira, que, considerando (i) a natureza jurídica e (ii) os fins dos institutos públicos, (iii) tendo em vista o cumprimento escrupuloso do princípio da boa administração dos dinheiros públicos (assente no artigo 18.º da LEO de 2015, no artigo 266.º da CRP e nos artigos 3.º e seguintes do CPA), que diligenciem:

  1. pelo aperfeiçoamento da fundamentação escrita e expressa das suas opções administrativas de – excecionalmente – restringir o acesso do mercado aos dinheiros públicos (promovendo assim o respeito pela lei, pela igualdade de tratamento, pela concorrência e pela imparcialidade da Administração Pública) e

  2. pela fundamentação escrita, clara, suficiente e verdadeira dos preços dos bens e serviços adquiridos (promovendo assim o respeito pela transparência, pela publicidade, pela concorrência e pela legalidade estrita das decisões administrativas).

 

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