REVISTA DO TRIBUNAL DE CONTAS
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PARECER SOBRE A CONTA GERAL DO ESTADO – 2023

2024-09-27

Relator: Conselheira Ana Margarida Leal Furtado

 

DESCRITORES

ANO 2023 / CONTA GERAL DO ESTADO / PARECER / TRIBUNAL DE CONTAS.
 

SUMÁRIO

No Parecer sobre a Conta Geral do Estado de 2023, o Tribunal aprecia a atividade financeira do Estado e formula 67 recomendações ao Governo e à Assembleia da República, com vista a suprir as fragilidades detetadas. O Juízo emitido é de não conformidade da Conta com a Lei de Enquadramento Orçamental por esta não integrar as demonstrações orçamentais e financeiras consolidadas da administração central e da segurança social. Inclui ainda reservas, por omissões e erros materialmente relevantes, e ênfases relativamente a outras matérias de destaque.

NÃO CONFORMIDADE DA CONTA FACE À LEI DE ENQUADRAMENTO ORÇAMENTAL

  1. A Conta Geral do Estado de 2023 não foi elaborada nos termos da Lei de Enquadramento Orçamental, o que também impossibilitou a sua certificação pelo Tribunal. A informação consolidada de natureza orçamental apresentada não cumpre os requisitos das demonstrações orçamentais previstos na lei. Por sua vez, verifica-se a não inclusão de demonstrações financeiras da administração central, por atrasos no processo de implementação da contabilidade financeira. Acresce ainda a não inclusão das demonstrações financeiras consolidadas da segurança social, por dificuldades decorrentes da transição para o Sistema de Normalização Contabilística para as Administrações Públicas (SNC-AP), pelas 12 entidades da segurança social.

    O Ministro de Estado e das Finanças aponta para uma implementação gradual e faseada da Lei de Enquadramento Orçamental, o que torna necessária a adequação dos prazos legalmente definidos e já ultrapassados. Acresce que o estado de desenvolvimento dos projetos de implementação da Lei de Enquadramento Orçamental indicia que, mesmo que seja possível concretizar os investimentos previstos em sede de financiamento do Plano de Recuperação e Resiliência e operacionalizar os sistemas de informação, existem riscos que condicionam as condições de produção da informação de gestão e de prestação de contas nos moldes previstos, em 2026 (ano indicado pelo Ministério das Finanças para a preparação da Conta nos termos da lei).

  2. Os atrasos na implementação da Lei de Enquadramento Orçamental prejudicam uma contabilidade orçamental mais rica, uma contabilidade financeira mais avançada e uma contabilidade de gestão orientada para a transparência. Os atrasos derivam da inexistência de condições essenciais. Neste âmbito, destacam-se: i) a definição de elementos estruturantes do quadro concetual de referência à preparação da Conta; ii) o desenvolvimento dos sistemas de informação de suporte à preparação da Conta; iii) a criação de mecanismos de identificação das entidades que integram o perímetro do grupo público nas óticas financeira e orçamental; iv) a conclusão dos processos para operacionalizar a Entidade Contabilística Estado; e v) a implementação de procedimentos de controlo interno destinados a garantir a fiabilidade da Conta.

EXECUÇÃO ORÇAMENTAL

  1. Em 2023, na execução da administração central e da segurança social atingiu-se um excedente orçamental de 7 371 M€ (2,8% do PIB), invertendo a tendência deficitária dos últimos anos. A utilização de excedentes encontra-se limitada a determinadas finalidades, no caso de 2023, ao pagamento de pensões futuras. O excedente refletiu o desempenho da receita, com um aumento de 14 654 M€ face a 2022, principalmente por via da receita fiscal (mais 6 763 M€), uma vez que a despesa teve uma variação positiva (mais 3 729 M€), não obstante a redução do esforço financeiro com as medidas de mitigação dos efeitos do choque geopolítico e do combate à COVID-19.

    Excluindo o efeito de duas operações de natureza excecional, o excedente teria sido cerca de metade do verificado: a transferência do Fundo de Pensões do Pessoal da Caixa Geral de Depósitos para a Caixa Geral de Aposentações (3 018 M€) e a devolução ao Estado de parte do valor transferido em 2022 para apoio ao Sistema Nacional de Gás (700 M€). Parte das receitas que contribuem para o excedente orçamental de 2023 apenas pode ser utilizada para assegurar o pagamento de pensões futuras: i) a transferência das responsabilidades do referido Fundo de Pensões foi aplicada em dívida pública, constituindo uma reserva para fazer face aos encargos futuros; e ii) o excedente da segurança social (5 477 M€), quase integralmente gerado no sistema previdencial, deve integrar o Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social para colmatar eventuais défices desse sistema.
 
  1. A receita alcançou 108 585 M€, correspondendo 82,1% deste montante a receita fiscal e a contribuições sociais. A despesa totalizou 101 214 M€, dos quais 57,7% referentes a pensões (e outras prestações sociais) e a despesas com o pessoal.

    Os aumentos na despesa abrangeram quase todas as componentes, sendo de destacar: 2 970 M€ (8,5%) nas pensões e prestações sociais diretas, 1 286 M€ (6,7%) nas despesas com pessoal (essencialmente nas áreas da saúde e da educação) e 772 M€ (6,1%) na aquisição de bens e serviços. O aumento de 332 M€ em despesas de investimento refletiu-se, principalmente, nas áreas das infraestruturas e habitação e do ambiente e ação climática.

    Atendendo à natureza estrutural e duradoura, são particularmente relevantes as pensões pagas pela segurança social e pela Caixa Geral de Aposentações, no valor de 32 009 M€ (mais 1 308 M€ face a 2022; 4,3%).

    A Conta engloba a execução orçamental de 491 serviços processadores da administração central e de 12 entidades da segurança social. Quatro entidades da administração central estão omissas deste universo e duas não reportaram execução.

  2. O stock da dívida pública consolidada fixou-se em 247 212 M€, o que representa uma diminuição de 11 903 M€ (4,6%) face a 2022. Este bom desempenho – também refletido na dívida de Maastricht, que se reduziu para 99,1% do PIB – resultou do facto de uma parte importante do financiamento (mais 18 227 M€ do que em 2022) ter sido assegurada junto de entidades públicas que integram o perímetro orçamental. Os encargos com juros totalizaram 5 974 M€, um aumento de 3,0% face a 2022. Apesar das previsões apontarem para uma tendência decrescente do rácio da dívida (95,6% em 2024 e 91,5% em 2025), o seu desempenho ainda se situa aquém do valor de referência (60% do PIB), ou seja, o stock da dívida continua significativamente elevado. Esta realidade, em paralelo com a potencial diminuição ou finalização dos programas de compra de ativos por parte do Banco Central Europeu e o prolongamento da guerra na Ucrânia, reforça o risco quanto ao financiamento futuro, em especial em anos com elevado montante de dívida a refinanciar, como 2027 e 2030.

  3. As garantias prestadas pelo Estado (em termos acumulados) totalizaram 16 741 M€ (menos 2 084 M€ do que em 2022). Salienta-se que as garantias prestadas a entidades fora do perímetro orçamental (13 014 M€, 77,7% do valor total) constituem responsabilidades contingentes que, a serem executadas, têm impacto na despesa e na dívida e, por essa via, na sustentabilidade das finanças públicas.

  4. Embora não afetem o défice, a Conta integra operações classificadas como ativos financeiros que visam prosseguir objetivos sociais e de política pública, não se destinando a produzir retorno financeiro. Em 2023, enquadrou-se nessa situação o aumento de capital da EFACEC (216 M€). Em contabilidade nacional, algumas destas operações são consideradas no apuramento do saldo.

  5. Registou-se uma evolução positiva no relato orçamental da descentralização, mas a Conta de 2023 não procede ainda à divulgação detalhada de todos os valores transferidos ao abrigo deste processo. Com efeito, esta Conta relata, por área, competência e município, os valores orçamentados e executados a título de Fundo de Financiamento da Descentralização, mas, quanto ao outro instrumento financiador desta, o Fundo Social Municipal, não se verifica o mesmo grau de detalhe, que se considera necessário para comprovar que ambos os fundos financiam competências diferentes.

PROCESSO ORÇAMENTAL

  1. O reporte da execução das medidas de política teve um retrocesso face ao ano anterior, em prejuízo da transparência da informação. O enquadramento plurianual permanece limitado. O Relatório da Conta não divulga a execução de uma parte significativa das medidas, em particular, na área da receita. Por sua vez, o enquadramento plurianual do Orçamento para 2023 foi afetado pelo facto de as Grandes Opções 2022-2026 não apresentarem uma sistematização de medidas que permita estabelecer a sua consonância com o Relatório do Orçamento do Estado de 2023, o Programa de Estabilidade 2022-2026 não ter dado a conhecer as opções de política e o Quadro Plurianual das Despesas Públicas não explicitar de que forma as políticas públicas concorrem para os limites de despesa.

  2. Algumas componentes da receita e da despesa apresentam recorrentemente, desde 2017, desvios entre as previsões orçamentais e a execução. Estes desvios traduzem-se na suborçamentação da receita fiscal e de contribuições sociais e na sobreorçamentação da receita de fundos europeus e da maioria das rubricas de despesa, em especial o investimento, que, em 2023, ficou 2 202 M€ abaixo do previsto.

  3. A orçamentação da dotação provisional e das dotações centralizadas, inscritas no Ministério das Finanças, contraria o princípio da especificação e reduz a eficácia da previsão da despesa por programas orçamentais. Da dotação provisional utilizada (804 M€), 40,1% destinou-se ao reforço de dotações suborçamentadas, incluindo despesas com pessoal (231 M€) e não para fazer face a despesas excecionais, não previsíveis e inadiáveis, como a lei determina. Da dotação centralizada “regularização de passivos e aplicação de ativos”, inscrita em ativos financeiros (sem impacto no saldo), 456 M€ foram utilizados principalmente no reforço de despesas efetivas da saúde (com impacto no saldo).

CONTA DA ADMINISTRAÇÃO CENTRAL

  1. A receita da administração central (83 202 M€) aumentou 11 908 M€ (16,7%), influenciada por situações pontuais, pela melhoria da atividade económica e do mercado de trabalho, bem como pelo impacto da inflação. A transferência do Fundo de Pensões do Pessoal da Caixa Geral de Depósitos, a menor perda de receita decorrente das medidas de mitigação do choque geopolítico, a arrecadação de IVA de 2022 com prazo de pagamento prorrogado para 2023, a redução dos reembolsos de IRC do regime de ativos por impostos diferidos e a devolução ao Estado de verbas não utilizadas da medida de apoio ao gás natural explicam metade do aumento. A receita fiscal alcançou 59 642 M€, mais 6 758 M€ em comparação com 2022, em particular por via do aumento da receita do IVA (2 232 M€; 10,5%), do IRS (2 142 M€; 13,6%) e do IRC (1 585 M€; 22,3%).

  2. A receita fiscal está subavaliada em 159 M€. Para esta situação concorreu a incorreta dedução de: i) receitas próprias da Autoridade Tributária e Aduaneira (133 M€ registados como reembolso de IVA, IRS e IRC e 14 M€ como abate à receita); e ii) apoios sociais pagos (12 M€ por abate à receita de IRS), desvirtuando também o custo das medidas sociais adotadas.

  3. A falta de progressos na implementação do regime de contabilização das receitas do Estado continua a penalizar o rigor e a tempestividade da informação contabilística. As insuficiências na interligação dos sistemas, os atrasos na classificação e registo da receita e a falta de identificação de todos os responsáveis pela contabilização afetam a fiabilidade do reporte da receita e prejudicam a implementação da Lei de Enquadramento Orçamental, designadamente quanto aos projetos relativos à Entidade Contabilística Estado e à gestão da tesouraria. Porém, verificaram-se melhorias no reporte no Sistema de Gestão de Receitas com o registo das receitas das escolas dos ensinos básico e secundário (443 M€).

  4. As receitas fiscais consignadas totalizaram 4 985 M€ (8,4% da receita fiscal), registando um aumento de 597 M€, tendência que se verifica desde 2019. Esta prática condiciona uma gestão financeira global e não observa o princípio orçamental da não consignação segundo o qual não pode afetar-se o produto de quaisquer receitas à cobertura de determinadas despesas, pelo que deve ser objeto de escrutínio anual, no âmbito da discussão e votação do Orçamento.

  5. Na carteira de dívidas a cobrar pela Autoridade Tributária e Aduaneira, a dívida incobrável (10 419 M€) mais do que triplicou desde 2016, apesar do Estado ter vindo a criar regimes de apoio ao contribuinte, permitindo o pagamento de dívidas em prestações e a compensação de créditos. Em 2023, já representa 38,9% da dívida total (26 758 M€). O aumento registado deveu-se às crises financeiras, à pandemia e à crise energética, bem como à alteração da jurisprudência quanto à contagem do prazo que decorre até à prescrição da dívida, acrescendo, em 2023, dois processos de valor excecionalmente elevado (1003 M€), em validação.

  6. A despesa da administração central (81 308 M€) aumentou 2 393 M€ (3,0%), envolvendo componentes de natureza estrutural, sobretudo despesas com pessoal e aquisição de bens e serviços (mais 1 267 M€ e 765 M€, respetivamente). Destacam-se as medidas de valorização remuneratória de trabalhadores em funções públicas e, a nível setorial, o crescimento da despesa nas áreas da saúde e da educação, apesar do processo de transferência de competências para os municípios em curso ter contribuído para minimizar esse efeito. O crescimento das transferências de capital para empresas privadas e para as autarquias locais explica a maior variação percentual destas despesas.

  7. A despesa com habitação tem vindo a crescer desde 2019, não estando ainda reunidas as condições que permitam avaliar a intervenção do Estado neste âmbito. No período de 2019 a 2023, registou um aumento de 188,6%, atingindo 303 M€ em 2023, fruto da subida dos preços da habitação e dos valores das rendas, o que fez acelerar a intervenção do Estado no apoio à habitação. Cerca de um quinto desta despesa não épaga pelo Programa Infraestruturas e Habitação, mas por outros programas, o que prejudica a avaliação global do esforço financeiro do Estado com a habitação. Esta situação demonstra a necessidade de progredir na orçamentação por programas para aferir o custo e avaliar as políticas públicas.

  8. Os fundos de pensões integrados na CGA pressionam a despesa do Estado. Dos 19 fundos especiais de reserva constituídos na sequência da transferência de responsabilidades com pensões para a CGA, apenas 13 ainda dispunham de reservas, no final de 2023, sendo que apenas 4 geraram rendimento suficiente para cobrir os seus encargos e ainda acrescer valor à reserva. A evolução das reservas, pressionada pela diferença entre as responsabilidades tendencialmente crescentes e os recursos obtidos para fazer face às mesmas, tendencialmente decrescentes (quer por via da redução dos correspondentes beneficiários ativos, quer pela dificuldade em gerar valor) fazem antever o aumento dos encargos a assumir pelo Estado. As responsabilidades com pensões dos 6 fundos, cujas reservas já se extinguiram, representaram para a CGA/Estado um esforço financeiro de 183 M€, em 2023, e um valor acumulado de 2 021 M€, desde 2011.

  9. No final de 2023, os pagamentos em atraso há mais de 90 dias totalizavam 228 M€, o valor mais elevado desde 2020, interrompendo a tendência decrescente dos últimos cinco anos. Ao longo do ano, os pagamentos mantiveram uma média mensal de 510 M€, atingindo o valor máximo em novembro (1 054 M€). A redução verificada no final do ano reflete o efeito das dotações de capital para cobertura de prejuízos das unidades locais de saúde EPE que, no entanto, foram insuficientes para fazer face ao pagamento da totalidade dos encargos vencidos dessas entidades (444 M€ no final do ano), traduzindo a necessidade de rever o seu modelo de financiamento.

  10. Os sistemas centrais do Ministério das Finanças continuam a não incluir o registo de operações extraorçamentais materialmente relevantes, prejudicando a transparência e o controlo das contas. Esta situação decorre da inadequação dos sistemas de informação, de falhas de reporte dos serviços, bem como da falta de identificação formal da entidade responsável por autorizar a despesa e assegurar o seu registo contabilístico (caso da cobrança de impostos pela Autoridade Tributária e Aduaneira para entrega às regiões autónomas e aos municípios, 5 959 M€ em 2023).

  11. A informação sobre a dívida pública continua incompleta. A Conta omite o stock da dívida dos serviços e fundos autónomos que ascendeu a 27 150 M€, menos 2 639 M€ do que em 2022, devido, em particular, à extinção da dívida da CP – Comboios de Portugal ao Estado, no valor de 1 864 M€. Esta omissão condiciona a verificação do cumprimento dos limites de endividamento fixados pela Lei do Orçamento. A Conta reporta indevidamente como pagos 55 M€ relativos a montantes vencidos de Certificados de Aforro e do Tesouro que se mantinham à guarda do IGCP, por não ter conseguido efetivar o seu pagamento.

  12. A informação relativa ao património financeiro reportada na Conta é incompleta, não suprindo a falta de demonstrações financeiras. O valor do património financeiro atingiu 134 948 M€, mais 680 M€ do que em 2022, sendo 63,8% da carteira constituída por ativos detidos por entidades do perímetro orçamental, resultando num património financeiro consolidado de 45 204 M€. A carteira do Estado continuou a incluir ativos sem perspetiva de gerar valor ou com custos de gestão superiores aos valores a recuperar ou relativos a entidades extintas ou em processo de liquidação. No final de 2023, mais de metade da carteira dos serviços e fundos autónomos (59,4%) era composta por títulos de dívida pública.

  13. Em 2023, as participações do Estado no capital de empresas totalizaram 39 389 M€. Cerca de 90% destas participações são geridas pela DGTF e as restantes, maioritariamente, pela Parpública e pelo Fundo de Resolução. Sob gestão da DGTF, incluem-se as participações no Mecanismo Europeu de Estabilidade e na Infraestruturas de Portugal. Sob gestão da Parpública, incluem-se diversas no segmento imobiliário (designadamente nas Estamo e na Fundiestamo), bem como no setor das águas. A estas, acrescem as relacionadas com os processos de privatização. A carteira do Fundo de Resolução inclui as participações no capital social do Novo Banco e da Oitante.

  14. A despesa com ativos financeiros continua sobrevalorizada. Em 2023, foram contabilizados como ativos financeiros 562 M€ (1 052 M€ em 2022) de entradas de capital em empresas públicas para cobertura de prejuízos.

  15. A transferência de competências da gestão do património imobiliário público da Direção-Geral do Tesouro e Finanças para a Estamo, ocorrida em 2023, foi efetuada sem estarem garantidas condições suficientes à sua operacionalização. Esta situação originou, nomeadamente, constrangimentos na migração da informação, bem como na cobrança e contabilização das contrapartidas pagas por entidades públicas pela ocupação de imóveis do Estado.

  16. Subsiste a falta de inventário e de uma valorização adequada dos imóveis do Estado. O Relatório da Conta apresenta informação incompleta sobre as operações imobiliárias, omitindo 94,5% da receita de alienações e 55,5% da despesa com aquisições de imóveis. Por sua vez, o reporte sobre as rendas recebidas como contrapartida pela ocupação dos imóveis é incompleto. Para além disso, do valor devido de rendas, de 2014 a 2023, estão por pagar cerca de 23%.

  17. A informação sobre a posição de tesouraria das entidades que integram o perímetro da Conta mantém-se incompleta. A Conta apenas contém a movimentação de fundos na tesouraria do Estado, não refletindo as contas que as entidades detinham na banca comercial. O saldo da tesouraria do Estado, no final de 2023, ascendeu a 8 103 M€ (menos 4 719 M€ face a 2022).

  18. A apreciação do cumprimento do princípio da unidade de tesouraria continua comprometida por ausência de um quadro normativo completo e coerente, incluindo um regime sancionatório aplicável às entidades incumpridoras. Em 2023, foram identificados em incumprimento pelo menos 91 M€ de disponibilidades fora do Tesouro (48 M€ em 2022).

  19. Os benefícios fiscais centram-se essencialmente em apoios à economia e às famílias, com destaque para os recentes apoios à habitação. Continuam a verificar-se insuficiências na sua avaliação e controlo. O reporte da despesa fiscal na Conta abrangeu cerca de dois terços dos benefícios fiscais (202 em 303) e totalizou 15 056 M€, menos 1 385 M€ (-8,4%) do que em 2022. O benefício “Residentes não habituais”, com 1 297 M€, representava 62,8% da despesa fiscal em IRS. Constatou-se que, para estes contribuintes, a AT não controla a existência de dívidas fiscais, situação que daria origem à suspensão do benefício. Em consequência, no final de 2023, 93 contribuintes, no universo de 39 909, usufruíam deste benefício, apesar de terem dívidas fiscais (17 M€).

  20. No âmbito das parcerias público-privadas, subsistem insuficiências na identificação do universo, na validação dos dados prestados pelos parceiros públicos e privados, no acompanhamento pelas entidades envolvidas e no reporte orçamental. O Relatório da Conta apenas contempla informação relativa às parcerias objeto de reporte pela Unidade Técnica de Acompanhamento de Projetos, não integrando dados sobre outras concessões, incluindo subconcessões. A Conta assinala 1 255 M€ de encargos públicos líquidos com contratos de parceria (1 356 M€ em 2022), respeitante a 36 contratos, permanecendo por certificar a sua completude.

CONTA DA SEGURANÇA SOCIAL

  1. A Conta de 2023, relativamente à segurança social, foi elaborada com informação não definitiva. A adoção, pela primeira vez, do SNC-AP por todas as entidades do subsetor da segurança social coincidiu com a entrada em produção do novo sistema de informação financeira, cuja implementação se revelou particularmente complexa, resultando em atrasos nos fechos das contas individuais que comprometeram os prazos definidos para a produção da Conta Geral do Estado.

  2. A adoção do SNC-AP não foi integral no primeiro ano e verificou-se uma aplicação não homogénea por parte das entidades. A transição para o SNC-AP trouxe avanços, designadamente ao nível do acréscimo, com a especialização do rendimento das liquidações de receita de janeiro referentes às remunerações de dezembro do ano anterior. Porém, não foram ainda regularizados e supridos diversos erros e omissões que o Tribunal tem vindo a sinalizar.

  3. O saldo orçamental da segurança social em 2023 foi novamente histórico com um saldo efetivo de 5 477 M€. A sua estrutura de financiamento mantém-se ancorada na receita de contribuições e quotizações que representam 65,5% do total. O aumento do saldo em 34,6% (1 409 M€) face a 2022 reflete um crescimento expressivo da receita efetiva (7,9%), superior ao da despesa efetiva (4,4%). De destacar o aumento da receita contributiva (12,5%), sustentado nas dinâmicas positivas no mercado de trabalho (mais emprego e melhores remunerações), e da receita fiscal consignada à segurança social (13,9%).

    Do lado da despesa, verificou-se um aumento nas transferências correntes (4,8%), onde se incluem 863 M€ de apoios para mitigar o efeito do choque geopolítico. 93,8% da despesa efetiva destinou-se ao pagamento de prestações sociais (30 818 M€, +1 431 M€), com destaque para as pensões e complementos, que aumentaram 4,2% refletindo, quer as medidas do ano, quer o aumento do número de beneficiários (mais 30 950).

    A despesa inclui uma transferência de 34 M€ para a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa para pagamento de despesas extraordinárias com estruturas residenciais para pessoas idosas durante a pandemia, que não estavam previstas no protocolo de cooperação com a segurança social e para as quais não foi possível confirmar: i) se os valores foram validados; ii) se decorreram de necessidades e solicitações da segurança social; e iii) as razões pelas quais tais compromissos não foram satisfeitos em tempo oportuno, mas apenas decorridos mais de três anos.

  4. O novo apoio extraordinário à renda evidencia riscos suscetíveis de afetar a veracidade na atribuição, a exatidão no cálculo e consequentemente a correção no pagamento. A medida abrangeu em 2023 um universo de 258 661 beneficiários e envolveu uma despesa pública de 350 M€. O apoio anual por beneficiário situou-se nos 1 351,87€. Um quarto dos apoios atribuídos a atingirem, porém, o valor máximo mensal de 200€ por beneficiário. Foram identificadas desconformidades e outras situações na sua implementação, designadamente: i) 35 229 beneficiários aos quais o apoio não foi pago; ii) não pagamento dos valores referentes a dezembro de 2023; iii) pagamento do apoio a 32 beneficiários não residentes em território nacional; iv) beneficiários menores de idade; e v) 2 867 residentes não habituais beneficiaram deste apoio.

  5. O valor do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social, no final de 2023, encontrava-se mais próximo do objetivo legal de cobrir 2 anos de pensões do sistema previdencial (20,7 meses). O aumento no valor da carteira (6 838 M€; 29,7%) resultou sobretudo das entradas de capital recebidas: 2 434 M€ do saldo anual do sistema previdencial-repartição; 1 500 M€ de uma parcela das quotizações dos trabalhadores por conta de outrem; e 623 M€ das receitas fiscais consignadas, mas também de uma evolução positiva no valor acrescentado proveniente da gestão da carteira (2 281 M€).

  6. A Conta Geral do Estado de 2023, pela primeira vez desde há longa data, não veio acompanhada das demonstrações financeiras consolidadas da segurança social e respetivos anexos. Da análise das prestações de contas individuais das entidades que compõem o perímetro da Conta da Segurança Social verificou-se:

    • Inexistência de certificações legais de contas e pareceres nas contas individuais de entidades da segurança social (do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social e do Instituto da Segurança Social da Madeira), escusa de opinião no caso do Instituto da Segurança Social e emissão na modalidade de opinião com reservas e ênfases nas demais. Acresce a existência de reservas e ênfases que revelam fragilidades nas demonstrações financeiras das entidades, algumas das quais têm vindo também a ser alvo de reservas por parte do Tribunal nos diversos pareceres.

    • Persistência de erros e omissões:

      • Subvalorização dos passivos, por não refletir a existência de passivos pela atribuição de direito às prestações sociais a pagamento. A não relevação destes passivos compromete a obtenção de uma imagem verdadeira e apropriada da situação financeira da segurança social afetando, igualmente, a sustentação e transparência do impacto de decisões tomadas neste âmbito.

      • Subvalorização da dívida de contribuintes, uma vez que, para 41,4% das dívidas no valor de 5 702 M€, se verifica o incumprimento do princípio da especialização do exercício, não sendo calculados juros vencidos e também pela existência de 21 M€ de contas de juros de mora com saldos credores (contranatura).

      • Sobrevalorização da dívida de clientes, por não registo da sua incobrabilidade, continuando relevadas nas demonstrações financeiras dívidas sem qualquer possibilidade de recuperação.

      • Sobreavaliação da dívida de prestações sociais a repor, sendo o saldo relevado nos balanços das entidades 91 M€ superior ao que consta nas contas correntes dos beneficiários.

      • Fragilidades no controlo e contabilização dos bens imóveis, com imóveis não reconhecidos nas contas ou registados com valor zero, obras de beneficiação não incorporadas nos respetivos edificados, não segregação do valor do terreno do valor do edificado e incumprimento das vidas úteis definidas no Classificador Complementar 2 do SNC-AP. Foram ainda adotadas políticas contabilísticas ao nível do reconhecimento e mensuração que não são consentâneas com o previsto no SNC-AP. A existência de 516 imóveis devolutos sinaliza dificuldades na sua gestão e traduz-se em capital não aproveitado.

      • Fragilidades no controlo e contabilização dos bens móveis, por incorreta classificação, bem como por falta de uniformidade e erros na atribuição de vida útil, com impacto nas depreciações.

  7. Um conjunto de diplomas e normas legais, com impacto nas entidades da segurança social, carecem de revisão há vários anos, não se tendo verificado progressos em 2023. Neste âmbito, é de assinalar: i) a não constituição de património próprio do Fundo de Garantia Salarial e ausência de regulamentação nacional para parte do seu financiamento; ii) a inexistência de diplomas reguladores da tesouraria única da segurança social e da fixação dos limites das aplicações de capital realizadas pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social; iii) a existência de discrepâncias no quadro legal do financiamento, designadamente no que respeita à componente capitalização do sistema previdencial; e iv) a não revisão da portaria que regulamenta a política de investimento do FEFSS e da norma que determina a afetação de parte da receita de IRC (cuja formulação é inexequível).

  8. A aplicação do princípio da onerosidade desde 2019 tem-se traduzido numa arrecadação de receita bastante reduzida e numa acumulação de dívidas por cobrar. A segurança social, em 2023, arrecadou apenas 8 m€ ao abrigo do princípio da onerosidade (rendas pagas por entidades públicas pela ocupação de imóveis), ascendendo o valor por cobrar a 27 M€.

  9. O processo de consolidação continua incompleto, o que conduz à sobrevalorização da receita e despesa, ainda que não afete o saldo. Não foram eliminados todos os fluxos materialmente relevantes entre entidades pertencentes ao perímetro da Conta, sobrevalorizando a receita e a despesa em, pelo menos, 250 M€ na venda/aquisição de bens e serviços e 322 M€ relativos a juros da dívida pública direta.

  10. A desatualização do classificador económico tem originado a incorreta e insuficiente especificação da receita e despesa. As alterações do perímetro orçamental e a evolução da composição dos agregados da receita e despesa têm resultado na utilização de rubricas residuais para valores materialmente relevantes, por inexistência de rubrica adequada. Também concorre para a insuficiente especificação das operações a utilização por entidades públicas reclassificadas de um classificador simplificado.

OUTROS FLUXOS FINANCEIROS

  1. Os fluxos financeiros entre Portugal e a União Europeia apresentaram em 2023 um saldo de 6 043 M€, superior em 72,2% face ao ano anterior, destacando-se o acréscimo registado nas transferências para Portugal, resultante do aumento significativo dos fluxos financeiros provenientes do Mecanismo de Recuperação e Resiliência. Em 2023, foram transferidos 3 757 M€ da parcela subvenção do Mecanismo (3 586 M€ relativos ao 2.º e à maioria dos 3.º e 4.º pedidos de pagamento à Comissão Europeia e 171 M€ relativos ao pré-financiamento do REPowerEU).

  2. Na sequência do observado pelo Tribunal em anteriores pareceres, mantém-se a necessidade de acelerar o ritmo de execução dos fundos europeus, para evitar a perda de fundos e para que os mesmos contribuam eficazmente para a recuperação e crescimento económico e financeiro do País. Neste âmbito, tendo em conta a execução registada no final do ano de 2023, torna-se necessário:

    • Encerrar o Portugal 2020, já que 761 M€ (625 M€ do FEADER; 128 M€ do Fundo de Coesão; e 8 M€ do FEAMP) permaneciam por executar/validar;

    • Acelerar a execução do PRR, uma vez que se encontrava por executar/validar um montante avultado (18 579 M€);

    • Impulsionar a execução do Portugal 2030, visto que, findo já o terceiro ano do período de programação, esta se mantinha a um nível incipiente, encontrando-se por executar/validar mais de 98% (22 582 M€) do valor programado.

  3. No âmbito do PRR, continuam a ser identificadas insuficiências nos registos contabilísticos, bem como diferentes práticas de contabilização do recebimento e da utilização destes fundos. Em resultado, os registos contabilísticos espelhados na Conta de 2023 não refletem de forma adequada as verbas recebidas pelos beneficiários do PRR, o que afeta a fiabilidade da informação e prejudica a monitorização da execução orçamental.

    A execução do PRR mantém-se baixa, face ao período de execução decorrido. Até final de 2023, a execução orçamental acumulada da despesa do PRR registada na Conta Geral do Estado (despesa consolidada) foi de 2 793 M€, tendo a do ano de 2023 sido de 1 751 M€. Embora referidos apenas às entidades integradas no perímetro da Conta, estes valores traduzem um nível de execução orçamental de apenas 18,6% do valor da dotação contratualizada entre a Estrutura de Missão Recuperar Portugal e os beneficiários diretos e intermediários do mesmo perímetro. O nível de execução, embora tenha crescido 10,6 pontos percentuais relativamente a 2022, considera-se baixo, uma vez que no final do ano já estavam decorridos três anos do período de execução do Mecanismo de Recuperação e Resiliência, o qual deve ser integralmente cumprido até agosto de 2026.

    Apenas 16% do valor total programado para o PRR havia, no final de 2023, chegado efetivamente aos executores dos investimentos. Considerando a execução global do PRR (incluindo as entidades fora do perímetro de consolidação da Conta), verificou-se que, no final de 2023, do total das transferências recebidas da CE (7 772 M€), 3 637 M€ haviam chegado aos beneficiários diretos e finais, o que correspondia a cerca de 47% dessas transferências e a 16% do valor total programado para o PRR (22 216 M€).

  4. Os fluxos financeiros para as regiões autónomas e para as autarquias locais registaram um crescimento em 2023. Estes fluxos totalizaram 1 055 M€ e 6 253 M€ (mais 19,2% e 12,9%, respetivamente) e abrangem a participação nos impostos e verbas afetas a finalidades específicas, designadamente empréstimos e fundos europeus. Nas regiões autónomas, o aumento deveu-se ao maior volume de transferências de fundos europeus, enquanto nas autarquias locais decorre do processo de descentralização de competências (em 2023, as transferências do Fundo de Financiamento da Descentralização ascenderam a 1 210 M€).

  5. As despesas, por beneficiário, pagas pelo Estado referentes ao Subsídio Social de Mobilidade nas regiões autónomas mais do que duplicaram nos últimos 9 anos. O respetivo regime legal carece de revisão, pois não incentiva a procura por viagens mais económicas nem previne práticas comerciais que empolem os preços das viagens. Este subsídio, que consiste no reembolso de uma parte do custo das viagens a residentes nas regiões autónomas e a estudantes em deslocação entre as regiões e o Continente, em 2023, totalizou 126 M€ (89 M€ em 2022). O seu custo unitário passou entre 2015 e 2023, de 98€ no caso da Madeira para 194€ e de 163€ para 376€, nos Açores.

  6. A informação respeitante ao financiamento do setor empresarial do Estado reportada no Relatório da Conta é incompleta. As limitações do Relatório derivam da informação se restringir às operações efetuadas pela Direção-Geral do Tesouro e Finanças e extravasar o âmbito do setor ao incluir fluxos com empresas da administração regional e local e alguns fundos com autonomia administrativa e financeira, o que revela a importância de identificar corretamente as empresas que integram este setor. O financiamento líquido do setor totalizou 4 418 M€ (menos 13 M€ do que em 2022), destinando-se 63,0% a empresas públicas de transportes e de infraestruturas rodoviárias e ferroviárias.

  7. A informação relativa aos apoios, sob a forma de subsídios e transferências a entidades não pertencentes à administração pública, não é apresentada no Relatório da Conta de forma clara e integrada. Estes apoios ascenderam a 4 664 M€, menos 21,6% do que em 2022. A materialidade e natureza não reembolsável dos apoios exige um escrutínio rigoroso, que passa pela transparência da informação, sobretudo quanto às finalidades que visam atingir. Apesar de obrigatória a publicitação dos apoios concedidos a particulares, subsistem diferentes abordagens, âmbitos e critérios aplicados na classificação dos apoios, em prejuízo da qualidade da informação.

  8. Os apoios ao setor financeiro atingiram 21 M€ devido, na quase totalidade, a despesas com a reprivatização do BPN (20 M€). Em 2023, em termos globais, o saldo entre as receitas e as despesas foi favorável ao Estado (294 M€, que compara com 165 M€ em 2022), apesar de o valor acumulado continuar negativo (-21 590 M€). A receita totalizou 315 M€, relativos a amortização de empréstimos concedidos e a recebimento de dividendos. O valor nominal dos ativos no final do ano (11 063 M€) corresponde a cerca de metade dos encargos líquidos suportados.

 

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