REVISTA DO TRIBUNAL DE CONTAS
SECÇÃO REGIONAL DOS AÇORES
 

SENTENÇA N.º 1/2024–PRF/SRATC
2024-03-15
Processo n.º 1/2023-PRF

Relator: Conselheiro Paulo Heliodoro Pereira Gouveia

DESCRITORES

CONTRAPRESTAÇÃO / CULPA / DANO / ESTAÇÃO COMPETENTE / ILÍCITO FINANCEIRO / INFRAÇÃO FINANCEIRA / NEGLIGÊNCIA / PAGAMENTO INDEVIDO / REPOSIÇÃO / RESPONSABILIDADE FINANCEIRA / RESPONSABILIDADE FINANCEIRA REINTEGRATÓRIA / RESPONSABILIDADE FINANCEIRA SANCIONATÓRIA / RESPONSÁVEL FINANCEIRO.
 

SUMÁRIO

  1. O Tribunal de Contas português, previsto nos artigos 209.º, n.º 1 e 214.º da CRP, é o órgão constitucional jurisdicional supremo de controlo e julgamento das finanças públicas de Portugal (cf. O Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 787/2023). A atividade própria deste tribunal português, muito mais do que uma instituição administrativa superior de controlo financeiro, implica a tutela jurídica (por um tribunal) dos interesses presentes no concreto processo, seja ele um processo contencioso ou materialmente jurisdicional, seja ele um processo não contencioso (ou formal e organicamente jurisdicional, que é o ponto de vista constitucional para efeitos da separação dos poderes estaduais e da natureza das decisões de cada um desses poderes e respetivos órgãos decisores).

  2. Num conceito amplo de responsabilidades financeiras, estas são aquelas que resultam da prática de infrações financeiras por quem gere e utiliza dinheiros públicos. Trata-se de responsabilidades pessoais reguladas por normas de Direito público, que têm como pressupostos (i) um comportamento em matéria administrativa e ou financeira, (ii) descrito na lei, (iii) ilícito e (iv) censurável.

  3. Pressupõem sempre um juízo de culpabilidade, i.e., de censura jurídica, com referência a comportamentos relativos (i) à legalidade e regularidade das operações financeiras públicas, (ii) à fiabilidade das contas e demais demonstrações financeiras ou (iii) à observância das regras contabilísticas.

  4. Para o conceito de negligência (em responsabilidade sancionatória) que resulta do artigo 15.º do CP, ex vi artigo 67.º, n.º 4 da LOPTC, devemos sublinhar que o facto negligente possui um tipo de ilícito (a violação do dever objetivo de cuidado a que, em concreto, o agente está obrigado) e um tipo de culpa (a inobservância do cuidado que o agente está em condições de observar).

  5. O citado tipo de ilícito negligente é constituído (i) pelo desvalor da ação e, por vezes, (ii) pelo desvalor do resultado, devendo este resultado ser previsível e evitável para a pessoa prudente, dotada das capacidades que detém a pessoa média pertencente à categoria intelectual e social e ao círculo de vida do agente responsável financeiro.

  6. A apreciação da culpa (a censurabilidade, o juízo de censura referido à atitude interna do agente financeiro autor do comportamento financeiro ilícito) em concreto, na responsabilidade financeira sancionatória, deve ter em conta as especificidades das funções em concreto desempenhadas pelos sujeitos que a ela estão obrigados, ou seja, tendo em conta o padrão de um responsável financeiro (i) diligente e (ii) prudente na gestão e afetação dos dinheiros públicos que lhe compete zelar e gerir.

  7. O padrão de diligência exigível do gestor de dinheiros públicos é o dos deveres do cargo concreto; pelo menos, uma diligência de um responsável financeiro (i) mediano na informação, (ii) mediano no critério, (iii) mediano na prudência, (iv) medianamente avisado e cauteloso.

  8. Os pressupostos da responsabilidade financeira reintegratória , consabidamente como nos artigos 483.º, 562.º e 563.º do CC, são: (1º) dano ou prejuízo (aferido a partir da ilicitude objetiva, é a supressão ou diminuição de uma qualquer vantagem ou situação favorável protegida pelo Direito); (2º) comportamento humano ativo ou omissivo controlável ou controlado por uma vontade imputável; (3º) ilicitude da ação ou omissão ou juízo de desvalor sobre aquele facto humano (por lesão de um direito subjetivo alheio ou por violação de disposições legais cujo objetivo seja precisamente proteger os interesses alheios lesados), sem que haja causa de justificação para essa violação; (4º) censurabilidade do agente ou juízo de culpa (juízo de censura formulado pelo Direito relativamente à conduta ilícita do agente do facto danoso, com referência a dolo ou a negligência do agente; o Tribunal de Contas português avalia o grau de culpa de harmonia com as circunstâncias do caso, tendo em consideração as competências do cargo ou a índole das principais funções de cada responsável, o volume e fundos movimentados, o montante material da lesão dos dinheiros ou valores públicos, o grau de acatamento de eventuais recomendações do Tribunal e os meios humanos e materiais existentes no serviço, organismo ou entidade sujeitos à sua jurisdição – artigo 64.º, n.º 1 da LOPTC); e (5º) nexo de causalidade adequada entre o comportamento e o dano (o nexo de causalidade adequada entre facto voluntário e dano resulta essencialmente de o facto ir contra o escopo da norma jurídica violada, sem prejuízo de, logicamente, o facto ter de ser uma condição adequada – em termos de normalidade social – para o dano, condição essa que é , no caso da responsabilidade culposa, provocada pelo agente com certo fim). Dá origem à obrigação de repor dinheiros (cf. os artigos. 59.º, n.º 1 e 60.º da LOPTC).

  9. “Estação competente” para os efeitos do artigo 61.º, n.º 2 da Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas (aceitando-se como válido e útil o teor desta disposição legal), é o indivíduo (interno ou externo à Administração) que possam (por estarem legal e tecnicamente habilitados na matéria) e devam – por força da lei, de regulamento, de ato administrativo, de contrato ou de outra forma de vinculação – esclarecer, informar ou aconselhar o decisor ou codecisor (i.e., o agente da infração, a pessoa ou pessoas que efetivamente praticaram o ilícito financeiro descrito na lei, normalmente o órgão ou órgãos com competência legal para tal, não bastando, especialmente em sede de responsabilidade sancionatória, a simples intervenção num procedimento administrativo). A “estação competente” deve dispor de capacidade autónoma de análise e de pronúncia. Esta capacidade da “estação competente” face ao decisor ou codecisor pode decorrer da lei, de regulamento, de regras deontológicas, dos usos, da natureza própria das funções, da natureza própria das questões ou, eventualmente, da realidade do caso concreto.

  10. Há pagamento indevido para o efeito de reposição, ou melhor, só há dano na responsabilidade financeira reintegratória, (i) se não houver contraprestação efetiva ou (ii) se esta não foi adequada ou proporcional à prossecução das atribuições da entidade em causa ou aos usos normais de determinada atividade.

 

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