REVISTA DO TRIBUNAL DE CONTAS
RESPONSABILIDADES FINANCEIRAS
 

SENTENÇA N.º 18/2023 – 3ª S
2023-07-03
Processo n.º 6/2023-JRF

Relator: Conselheiro José Mouraz Lopes

DESCRITORES

AJUSTE DIRETO / ATENUAÇÃO DA MULTA / CONTRATAÇÃO PÚBLICA / ESTADO DE NECESSIDADE DESCULPANTE / RESPONSABILIDADE SANCIONATÓRIA.
 

SUMÁRIO

  1. As aquisições de uma molécula/medicamento e de próteses ocorridas durante vários períodos, no ano de 2016, através de procedimentos de ajuste direto, em colisão com o quadro legal referido no CCP, nomeadamente nos artigos 1.º, n.º 2, 2.º, n.º 1 alínea d), 16.º, 81.º, 112.º a 127.º, comportam uma violação inequívoca dos normativos citados, consubstanciando uma dimensão ilícita da conduta dos demandados, membros de um conselho de administração de um hospital.

  2. Nos termos do artigo 34.º do Código Penal, aplicável às sanções financeiras nos termos do artigo 67.º n.º 4 da LOPTC, o direito de necessidade conforma uma causa de exclusão da ilicitude, desde que exercido nas condições e requisitos aí estabelecidos, a saber: quando o facto praticado como meio adequado para afastar um perigo atual que ameace interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro (i) não ter sido voluntariamente criada pelo agente a situação de perigo, salvo tratando-se de proteger o interesse de terceiro (ii) Haver sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado; e (iii) ser razoável impor ao lesado o sacrifício do seu interesse em atenção à natureza ou ao valor do interesse ameaçado.

  3. Além disso, no também por via da aplicação das normas do direito penal ao caso, a situação de estado de necessidade, ainda que não exclua a ilicitude do facto, pode ainda eximir a culpa, nos termos a que se refere ao artigo 35.º n.º 1, nomeadamente «agindo sem culpa quem praticar um facto ilícito adequado a afastar um perigo atual, e não removível de outro modo, que ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro, quando não for razoável exigir-lhe, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente. Pode, por último, funcionar ainda no domínio da atenuação da culpa quando e se, nos termos do n.º 2 do artigo 35.º, «o perigo ameaçar interesses jurídicos diferentes dos referidos no número anterior, e se verificarem os restantes pressupostos ali mencionados, pode a pena ser especialmente atenuada ou, excecionalmente, o agente ser dispensado de pena».

  4. Para a aplicação, em concreto, da referida causa de justificação, exige-se sempre uma contextualização inequívoca no âmbito da ponderação de bens jurídicos a levar em conta, tanto como cláusula de exclusão da ilicitude como da culpa, em função das circunstâncias que caso a caso, enformem a situação em análise.

  5. A aquisição de medicamento, perfeitamente individualizada para um único doente, num contexto de afastamento de perigo atual, e não removível de outro modo, que ameaçava a vida ou a integridade física de terceiro (o paciente “tinha que ser tratado” com a referida molécula), uma situação de dúvidas procedimentais sobre onde seria seguido o doente e quem e como se adquiria a molécula, enquanto isso não fosse resolvido, conforma uma causa de exclusão da culpa, por via do estado de necessidade, não sendo exigível comportamento diferente.

  6. Com a exclusão da culpa não há infração financeira.

  7. Com referência a gestão de serviços de saúde públicos, as regras de contratação pública têm que ser conhecidas, ainda que não pormenorizadamente, por quem desempenha funções decisórias em órgãos de gestão da administração pública, ainda que nestes órgãos, nomeadamente nas Unidades de Saúde, exerçam funções profissionais de saúde (vg. Médicos e enfermeiros), com competências próprias, na medida em que, tais elementos, são «gestores» da organização, ainda que conjuntamente com outros responsáveis do órgão de gestão.

  8. Quem vai exercer essas funções de gestão pública, tem que ter (ou adquirir, se não as possuir) um mínimo de conhecimentos de matérias sobre as quais vai tomar decisões, nomeadamente decisões com impacto financeiro público». O que no caso dos demandados, não aconteceu.

  9. A situação envolvendo as condições que exerceram funções – num hospital de pequena dimensão, mas grande atividade e de excelência clínica na atividade de ortopedia, uma gestão financeira positiva – e a suas situações pessoais relevam para uma diminuição da culpa, de modo a funcionar a atenuação especial, com reflexo da multa devida pela infração a de acordo com o artigo 65.º n.º 7 da LOPTC.

 

TRANSFERIR TEXTO INTEGRAL