DESCRITORES
COMPETÊNCIA MATERIAL / DINHEIROS PÚBLICOS / ENTIDADE PRIVADA / ILEGALIDADE / INICIATIVA ECONÓMICA PRIVADA / INVALIDADE / PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO / PROCEDIMENTO JUSTO E EQUITATIVO / RECOMENDAÇÕES / RECURSO / RELATÓRIO DE AUDITORIA / SISTEMA JURISDICIONAL / TRIBUNAL DE CONTAS.
SUMÁRIO
- O sentido e alcance do recurso interposto de um relatório de auditoria, em que se assacam várias “invalidades” às recomendações nele formuladas em relação à entidade recorrente, é o de ser um recurso com natureza anulatória ou cassatória, o que implica apreciar e analisar das invocadas invalidades e, em função das conclusões de tal análise, retirar as devidas consequências jurídicas dessas “invalidades”.
- O enquadramento constitucional dado ao Tribunal de Contas (TdC) reflete uma clara opção político-constitucional a favor da adoção de um sistema jurisdicional, por contraponto aos outros dois sistemas possíveis – o sistema de Auditor-Geral ou um sistema misto Tribunal de Contas/Auditor-Geral.
- Ao exercer as suas competências de controlo financeiro e avaliação da boa gestão dos dinheiros públicos, o TdC não está a atuar fora do âmbito jurisdicional como o legislador constituinte o desenhou, pois é opção da Constituição erigir o controlo da gestão das verbas públicas (nas várias vertentes: avaliação da legalidade, da boa gestão e da responsabilidade financeira) numa verdadeira jurisdição financeira e em atribuir o exercício desta a um Tribunal independente – o TdC.
- Para concretização do conjunto de atribuições e competências do TdC, o legislador empregou um critério de atribuição de competência não apenas subjetivo, nos n.ºs 1 e 2 do artigo 2.º da LOPTC, tendo também submetido à jurisdição do TdC “as entidades de qualquer natureza que tenham participação de capitais públicos ou sejam beneficiárias, a qualquer título, de dinheiros ou outros valores públicos”, com base num critério objetivo, a espécie pública dos dinheiros ou valores envolvidos, independentemente da natureza – privada, pública ou mista - da entidade (cf. n.º 3 do artigo 2.º citado).
- Desta norma retira-se que está atribuída pelo legislador ao TdC a competência para apreciar a boa gestão financeira de qualquer entidade - independentemente da sua natureza - a quem caiba a gestão ou aplicação, a qualquer título, de dinheiro ou outros valores públicos.
- A Diretiva 2014/59/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 15.05.2014 e o direito nacional que a transpôs - Lei n.º 23-A/2015 de 26.03 - são claros no sentido de que deve ser o setor financeiro, no seu conjunto - mas também equitativamente, em função dos seus rácios de capitais próprios, do montante do passivo e do capital de risco – quem deve financiar, com contribuições obrigatórias, a estabilização do sistema financeiro, não devendo tal encargo ser suportado, a não ser excecionalmente, por apoios financeiros públicos, nem onerar os contribuintes.
- As contribuições do setor de crédito e financeiro para o Fundo de Resolução (FdR), sendo “obrigatórias”, como são, e sendo até classificadas como “receitas consignadas”, quando ingressam no FdR, passam a ser “dinheiro público”, da mesma forma que os valores que cada um de nós paga, enquanto cidadão (ou pessoa coletiva), de impostos, contribuições ou taxas, também são dinheiro privado que, porém, passa a ser “dinheiro público” quando ingressa nos cofres do Estado.
- O Novo Banco, S.A. (NB) foi beneficiário de “dinheiros públicos”, que consistiram nos sucessivos financiamentos ou pagamentos efetuados pelo FdR ao NB entre 2018 e 2021, no montante global de 3 405 018 330,00 €, nos termos do Acordo de Capitalização Contingente (ACC) celebrado em 18.10.2017.
- Não obstante a natureza de entidade privada do NB, na medida em que foi beneficiário de “dinheiros públicos”, é uma entidade que está sujeita “à jurisdição e ao controlo financeiro” do TdC e, nessa medida, este tem competência material para, no âmbito da auditoria levada a cabo, formular Recomendações ao NB.
- Os dinheiros pagos ao NB pelo FdR, ao abrigo do ACC, são de considerar como despesa publica, pelo que a auditoria a levar a cabo pelo TdC pode e deve abranger a fiscalização das ações que, por ação ou omissão, levaram a que fosse realizada tal “despesa publica”, ou seja, levaram a que fossem efetuados os pagamentos do FdR ao NB (nesses concretos montantes), precisamente porque esses pagamentos (desses montantes) são já “aplicação” de dinheiros públicos.
- Não há extravasamento da medida da competência fixada no artigo 2.º, n.º 3, da LOPTC, porquanto a “aplicação” dos dinheiros públicos importa averiguar as circunstâncias que estão subjacentes aos pagamentos levados a cabo pelo FdR ao NB e, nestas circunstâncias, estão os aspetos da gestão do NB que influenciaram os défices de capital, os quais constituem um dos referenciais para determinar tais financiamentos ou pagamentos.
- Estando em causa a aplicação de dinheiros públicos e tendo o financiamento inerente aos mesmos ocorrido por virtude do modo de funcionamento acordado no ACC, a que o recorrente se auto vinculou, a auditoria levada a cabo, procurando aferir das circunstâncias que determinaram os montantes a financiar ao NB, por parte do FdR, não coloca em causa o direito à propriedade privada, à iniciativa privada ou à autonomia privada do recorrente.
- O eventual “erro” quanto à recolha de evidências – ser inadequada e insuficiente -, a apreciação das evidências recolhidas ter sido incorreta, o juízo profissional formulado pelos auditores não ser o mais adequado ou ser mesmo errado, tudo isso com consequências de serem extraídas conclusões mal fundamentadas ou mesmo incorretas e serem formuladas recomendações não justificadas e/ou desnecessárias, isso não gera qualquer vício jurídico de “invalidade” e/ou “ilegalidade” do relatório de auditoria e das suas recomendações, mas antes e apenas fragiliza globalmente o relatório de auditoria, quanto à sua qualidade técnica.
- O relatório de auditoria é o culminar de um processo de auditoria, o qual deve observar o procedimento legal, neste se considerando o disposto no artigo 13.º da LOPTC, bem como deve ser orientado por princípios, métodos e técnicas de auditoria, não sendo configurado legalmente como um ato administrativo, ou equiparado, não lhe sendo aplicáveis os conceitos e as consequências do procedimento administrativo.
- O princípio do contraditório não pode ser interpretado com uma rigidez que o impeça de ser moldado à diferente natureza dos procedimentos aos quais é aplicável, sendo aliás essa sua plasticidade que o torna um dos princípios estruturantes do processo equitativo.
- Sendo diferentes as naturezas, consequências e valores subjacentes aos diferentes procedimentos e processos aos quais se aplica, é a sua capacidade de adaptação, em termos de intensidade, que permite ao princípio do contraditório tornar-se transversal a todos eles.
- A intensidade de aplicação do princípio do contraditório terá de ser tanto maior quanto mais gravosas forem para o particular as consequências dos processos ou procedimentos nos quais se vê envolvido, sendo também necessário ajustá-lo aos demais valores ou interesses constitucionalmente protegidos que estejam em jogo nesses mesmos procedimentos.
- Considerando que os relatórios de auditoria não constituem “atos processuais” integrados num processo jurisdicional (muito menos num processo de “partes”), necessariamente as exigências de contraditório aqui não se fazem sentir com a mesma intensidade que é exigível no processo jurisdicional.
- E considerando que, no caso concreto, as conclusões do relatório de auditoria são as mesmas que já constavam do relato de auditoria, que o recorrente teve oportunidade de se pronunciar sobre as mesmas, assim como sobre os achados e evidências que, na perspetiva da auditoria, as suportavam, procedendo às alegações e observações que teve por pertinentes e, considerando ainda, que as recomendações são decorrência daquelas conclusões, é de concluir que foi dado cumprimento, em termos essenciais e substanciais, ao princípio do contraditório, nos termos exigidos no artigo 13.º da LOPTC.
- A atividade dos tribunais, quando atuam no âmbito e na esfera da sua competência material, pode implicar uma fiscalização, compressão ou mesmo restrição da autonomia ou iniciativa privada das pessoas (sejam pessoas coletivas ou singulares, privadas ou públicas), concretizada na constitucionalmente consagrada sujeição e obediência obrigatória de todas as entidades públicas e privadas às decisões dos tribunais.
- Se a mera natureza de instituição financeira já implicava uma restrição ao grau de autonomia privada do recorrente - daí a supervisão do banco central -, o facto de estar implicado num processo de resolução bancária e de, por essa via, ter sido recetor de dinheiros públicos, veio colocar o NB sob um ainda mais apertado escrutínio, nomeadamente quanto aos seus atos de gestão com reflexos na utilização de dinheiros públicos.
- Foi o próprio legislador quem fez uma ponderação entre o interesse público de fiscalização do bom uso dos dinheiros públicos e o direito à autonomia privada, tendo concluído pela compressão deste último em favor do primeiro, quando sujeitou ao controlo do TdC qualquer entidade, independentemente da sua natureza pública ou privada que, a qualquer título, seja beneficiária de dinheiro ou valores públicos.
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