REVISTA DO TRIBUNAL DE CONTAS
RESPONSABILIDADES FINANCEIRAS
 

ACÓRDÃO N.º 22/2021 – 3ª S/PL
2021-09-06
Recurso Ordinário n.º 12/2019
Processo n.º 11/2018-JRF

Relator: Conselheiro José Mouraz Lopes

DESCRITORES

ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO / APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO / AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA / CONTRATAÇÃO PÚBLICA / CULPA DIMINUTA / FISCALIZAÇÃO PRÉVIA / INFRAÇÕES FINANCEIRAS / INFRAÇÕES PROCESSUAIS / PANDEMIA / PRESCRIÇÃO / RELEVAÇÃO DA RESPONABILIDADE / SISTEMA NACIONAL DE COMPRAS PÚBLICAS
 

SUMÁRIO

  1. A reapreciação da prova, em segunda instância, com a finalidade de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido, é efetuada sobre os fundamentos constantes da sentença (motivação dos factos provados e não provados). Trata-se, na concretização da reapreciação da prova, de afirmar uma autonomia decisória do Tribunal de recurso, concretizado através do acesso direto às provas gravadas ou existentes (como, por exemplo a prova documental) devendo consequentemente fazer uma apreciação crítica das mesmas provas, formulando, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.
  2. Não consubstancia qualquer erro em matéria de facto, a circunstância de os recorrentes efetuarem uma avaliação diferenciada sobre a prova produzida em relação à apreciação e valoração da prova feita pelo Tribunal na sentença, efetuada adequada e fundamentadamente, na medida em que o princípio da livre apreciação da prova é o princípio fundamentação do direito probatório que sustenta o sistema jurídico português, nomeadamente na jurisdição financeira.
  3. Igualmente não consubstancia um erro na matéria de facto a circunstância de se pretender no recurso consagrar uma outra versão dos factos, ainda que constante da contestação, que foi rejeitada pelo tribunal em função das provas produzidas e que não foi valorada, através de decisão devidamente fundamentada.
  4. O Decreto-Lei n.º 170/2008 de 26 de agosto, estabeleceu o regime jurídico do parque de veículos do Estado, abrangendo a aquisição ou locação de veículos, em qualquer das suas modalidades, a sua afetação e utilização, manutenção, assistência e reparação, bem como o seu abate e alienação ou destruição, onde são estabelecidos vários princípios e requisitos específicos que regulam obrigatoriamente a matéria, concretamente, a compra, a permuta, a locação, a substituição, afetação de veículos, classificação, abrangendo por isso, a utilização e gestão dos veículos.
  5. Até à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 25/2017, de 3 de março, as Universidades públicas integravam o sistema nacional de compras públicas como «entidades compradoras vinculadas». A partir dessa data as Universidades públicas continuam a integrar o sistema nacional de compras públicas, mas sendo agora entidades compradoras voluntárias.
  6. As Universidades, enquanto institutos públicos integrados na administração indireta do Estado, não deixaram de estar sujeitas ao regime do Decreto-Lei n.º 170/2008, que estabelece o regime jurídico do parque de veículos do Estado, adiante designado por PVE, abrangendo a aquisição ou locação de veículos, em qualquer das suas modalidades, a sua afetação e utilização, manutenção, assistência e reparação, bem como o seu abate e alienação ou destruição.
  7. Independentemente da sua desvinculação como «entidade vinculada obrigatória» ao regime das compras públicas, as Universidades não foram excecionadas do cumprimento das regras gerais financeiras vinculantes de toda a administração pública, direta e indireta, máxime as que decorrem do Decreto-Lei citado e das normas subsequentes aprovadas que regem a matéria, Nomeadamente as normas que decorrem das leis de execução orçamental que foram aprovadas desde então e que vieram condicionar a aquisição de veículos a autorização ministerial e ao abate, no mínimo, de dois veículos em fim de vida por cada novo veículo adquirido de forma onerosa.
  8. A autonomia estatutária das universidades significa a faculdade de cada instituição do ensino superior poder definir normativamente a sua própria organização interna e funcionamento, aprovando a sua «Constituição», convivendo neste domínio uma reserva de lei com uma reserva de estatuto.
  9. O enquadramento financeiro que consubstancia o regime jurídico das universidades assume-se como uma dimensão do quadro constitucional que está fora do quadro normativo que encerra o âmbito da autonomia universitária, sendo as normas legais vinculativas sobre esta matéria estabelecidas para todos os institutos públicos.
  10. A especificidade da autonomia universitária, garantir, institucionalmente, o exercício da liberdade de investigação e de ensino, reconhecidos como direitos pessoais fundamentais, não é, de todo, posta em causa pela definição e exigência do cumprimento das leis financeiras públicas, estabelecidas por lei, às Universidades e aos demais institutos públicos
  11. A culpa diminuta consubstancia uma «quase ausência de culpa» dos responsáveis financeiros.
  12. Não pode considerar-se como uma «quase ausência de culpa», suscetível de fundar o funcionamento da dispensa de pena, a situação factual provada que consubstancia um conjunto de atuações ilícitas que envolvem um período de tempo longo em que ocorreram mais factos ilícitos e que evidenciam exatamente o contrário de um ato pontual, concreto, e eventualmente desculpável, de alguém que tem a responsabilidade de gerir uma entidade pública, como é uma Universidade.
  13. Na relevação da responsabilidade financeira reintegratória trata-se de um poder-dever do Tribunal que apenas deverá ocorrer quando e se verificadas as circunstâncias que o permitem, fundamentando-se na decisão o circunstancialismo que a sustente.
  14. Não é passível de funcionar a relevação no caso em que toda a factualidade que envolve o demandado evidencia uma prática cuja dimensão culposa ainda que negligente, não deve nem pode ser negligenciável, pelas suas consequências, em função das suas responsabilidades, na medida em que estão em causa vários atos (empreitadas), ainda que em continuação delitual (do ponto de vista jurídico).
  15. Já é possível relevar essa responsabilidade nas circunstâncias factuais em que está em causa uma situação pontual em que interveio um demandado, de forma negligente, ter praticado os factos na sequência de comportamento/pedido de terceiro de quem funcionalmente dependia e estava sujeito e ainda de não ter sancionamentos financeiros anteriores.
  16. A decisão de escolha do procedimento de formação de contratos, de acordo com as regras fixadas no Código de Contratos Públicos, deve ser fundamentada e cabe ao órgão competente para a decisão de contratar nada impedindo que quer a escolha do procedimento, quer a respetiva fundamentação sejam feitas em simultâneo com a decisão de contratar.
  17. Tendo sido efetuada a fundamentação nos referidos procedimentos concursais, de acordo com exigido, legalmente, à data, não se verifica, nesta parte qualquer colisão ou ilegalidade suscetível de enquadrar a infração imputada.
  18. A Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho que, no seu artigo 7º alterou o artigo 48º da LOPTC, dispensando de fiscalização prévia os contratos referidos nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 46º de valor inferir a 750 000,00 € com exclusão do montante de IVA que for devido.
  19. Desde 25/7/2020 os atos e contratos de valor inferior a €750.000,00 não estão sujeitas a fiscalização prévia, e a respetiva execução financeira sem submissão ao Tribunal de Contas para aquele efeito não integra infração financeira (por via da conjugação dos artigos 45.º, n.º 1, 46.º, nºs 1, alínea c) e 2, 48.º, redação atual, e 65.º, n.º 1, alínea h), da LOPTC).
  20. A situação factual em causa que, ao tempo consubstanciava uma dimensão ilícita, deixou de o ser, por via da referida alteração legislativa. Estando em causa a eliminação da dimensão ilícita que conforma a infração financeira, está em causa, no caso, a aplicação do artigo 2º n.º 2 do Código Penal, aplicável por via do disposto no n.º 4 do artigo 67.º da LOPTC. Situação que importa a absolvição do demandado.
  21. As infrações do artigo 66º da LOPTC, são infrações de natureza processual, destinando-se, como outras a sancionar o incumprimento do dever de colaboração com o Tribunal, não existindo naquelas infrações qualquer dimensão de natureza delitual.
  22. Não tendo sido demandado, por via de infração processual pelo Ministério Público no seu requerimento inicial, não é possível condenar, na sentença, o referido demandado, na medida em que se trata de uma impossibilidade material, no sentido de alterar completamente o âmbito do pedido e da causa de pedir em que se sustenta o requerimento do Ministério Público, como também a «aplicação de multas do artigo 66º está reservada, fora do âmbito do conhecimento em recurso, nos processos da 1ª e 2ª secção do Tribunal de Contas, ou em processo autónomo», conforme decorre do artigo 58º n.º 4 da LOPTC.
  23. O quadro jurídico normativo decorrente da pandemia alterou, ainda que temporalmente, o regime geral da prescrição, tendo em conta as suspensões de prazos processuais envolvendo todas as jurisdições, nomeadamente o processo no Tribunal de Contas, nomeadamente por via da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, a Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril, a Lei n.º 16/2020, de 29 de maio, a Lei n.º 4º-B/2021 de 1 de fevereiro e a Lei n.º Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril.
  24. Tendo em conta a natureza especifica deste regime legalmente estabelecido apenas e só em função de uma determinada e concreta situação excecional, as consequências deste conjunto normativo, para a apreciação e decisão do conhecimento da prescrição são, por isso, um acrescento dos períodos legalmente estabelecidos de suspensão aos prazos estabelecidos nas várias legislações que as estabelecem. Nomeadamente, no caso das infrações financeira, o regime estabelecido no artigo 70º da LOPTC.

 

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