REVISTA DO TRIBUNAL DE CONTAS
RESPONSABILIDADES FINANCEIRAS
 

SENTENÇA N.º 17/2021 – 3ª S
2021-08-30
Processo n.º 33/2019-JRF

Relator: Conselheira Helena Ferreira Lopes

DESCRITORES

APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO / ARTIGO 48,º, N.º 1, DA LOPTC, NA REDAÇÃO DA LEI 27-A/2020, DE 24 DE JULHO / CENSURABILIDADE DO ERRO / COMPETÊNCIA MATERIAL DO TRIBUNAL DE CONTAS / CONTRATOS DE SEGURO / DOLO DO TIPO / DOLO NECESSÁRIO / ERRO SOBRE A ILICITUDE / EMPREITADA PARA FINS DE INVESTIGAÇÃO / FRACIONAMENTO DA DESPESA / FRACIONAMENTO DO OBJETO CONTRATUAL / INCONSTITUCIONALIDADE / PRINCÍPIO DA APLICAÇÃO RETROATIVA DA LEI PENAL CONCRETAMENTE MAIS FAVORÁVEL / PRINCÍPIO DA AUTONOMIA FINANCEIRA DAS UNIVERSIDADES / UNIVERSIDADE-FUNDAÇÃO PÚBLICA COM REGIME DE DIREITO PRIVADO / URGÊNCIA IMPERIOSA
 

SUMÁRIO

  1. As receitas das universidades-fundação pública com regime de direito privado, mesmo quando próprias, são dinheiros públicos, por se tratarem de receitas de entidades públicas cujo fim último é a concretização das missões de serviço público a que aquelas universidades estão afetas (vd. as diversas alíneas do ponto 3.1. desta Sentença, em particular a alínea E).
  2. Sendo dinheiros públicos, as receitas próprias, tal como as receitas oriundas do OE, estão sujeitas à jurisdição do Tribunal de Contas, nos termos da LOPTC e CRP, designadamente para efeitos de efetivação de responsabilidades financeiras - cf. alínea e) do n.º 1 do artigo 5.º da LOPTC, e artigo 214.º da CRP, em particular a alínea c) do seu n.º 1.).
  3. O Tribunal de Contas é, assim, materialmente competente para efetivar responsabilidades financeiras dos responsáveis das universidades-fundação pública com regime de direito privado, mesmo na situação em que estes, no exercício das suas funções, afetem e utilizem receitas próprias sem origem no Orçamento de Estado, por tal competência caber na previsão do disposto nos artigos 1.º, n.º 1, e 5.º, n.º 1, alínea e), da LOPTC, bem como do artigo 214.º, n.º 1, alínea c), da CRP.
  4. O controlo financeiro e jurisdicional, que é simultaneamente público, técnico e externo, levado a cabo pelo Tribunal de Contas em nada colide com o princípio da autonomia financeira das universidades ínsito no nº 2 do artigo 76.º da CRP, que permanece imaculado.
  5. Tal autonomia não pode ser interpretada no sentido de dispensar qualquer instituição de ensino superior pública daquele tipo de controlo, tal como não isenta os respetivos gestores das responsabilidades financeiras que ao Tribunal de Contas cumpre efetivar.
  6. É que o princípio da autonomia financeira das universidades públicas, quer sejam universidades-fundação, quer sejam universidades-instituto, não constitui óbice ao disposto no n.º 1 do artigo 214.º da CRP, nos termos do qual o Tribunal de Contas é o órgão supremo de fiscalização da legalidade das despesas públicas e de julgamento das contas, competindo-lhe nomeadamente a efetivação da responsabilidade por infrações financeiras (artigo 214º, n.º 1, da CRP); improcede, por isso, a invocada violação do princípio constitucional da autonomia financeira da universidade em causa, que é uma fundação pública com regime de direito privado.
  7. Não se verificando o dolo do tipo previsto no n.º 2 do art.º 16.º do DL 197/99, que exige que os responsáveis ajam com intenção de subtraírem a realização da despesa ao regime previsto naquele diploma, improcede a infração prevista na alínea b), 2.ª parte, do n.º 1 do artigo 65.º da LOPTC, por referência ao artigo 16.º do DL 197/99.
  8. Mostra-se preenchida a infração prevista na alínea l) do n.º 1 do artigo 65.º da LOPTC, quer por referência ao artigo 22.º, n.º 1, alínea b), na redação originária do CCP, quer por referência ao artigo 22.º, n.º 1, alínea b), na redação atual do mesmo Código, quando (i) a formação dos contratos ocorra ao longo de 365 dias; (ii) as prestações contratadas forem contínuas, permanentes e do mesmo tipo, e, por isso, suscetíveis de constituírem objeto de um único contrato; (iii) com previsibilidade, à data da abertura de um dos procedimentos, da necessidade de abertura do(s) procedimento(s) posterior(es); (iv) e com valor global superior ao permitido para o procedimento adotado, no caso o ajuste direto, o que implicava a abertura de um único concurso público ou concurso limitado por prévia qualificação, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 20.º do CCP; (v) e ainda se os Demandados atuaram com culpa, como foi o caso.
  9. Os pressupostos para o fundamento de ajuste direto com base na alínea c) do nº1 do art.º 24.º do CCP são os seguintes: (i) acontecimento imprevisível; (ii) não imputável à entidade adjudicante; (iii) que seja a causa de uma situação de urgência imperiosa; (iv) impossível de cumprir nos prazos exigidos para outros procedimentos; (v) e que por isso imponha a necessidade de utilizar o ajuste direto, o qual deve conter-se nos limites do estritamente necessário; tais pressupostos são cumulativos.
  10. Acontecimentos imprevisíveis são todos os acontecimentos que um decisor público normal, colocado na posição do real decisor, não podia nem devia ter previsto.
  11. Provando-se que os ajuste diretos com base em urgência imperiosa se fundamentaram na deficiente qualidade do ar interior em alguns edifícios da Universidade, mas que tal deficiência já era conhecida dos seus responsáveis financeiros, desde há 1 ano ou mais, temos que dar por inverificado o pressuposto acontecimento imprevisível, o que aliado ao facto de o valor em causa ser superior ao ajuste direto e de os Demandados terem atuado com culpa, traz como consequência a subsunção de tal factualidade à infração financeira sancionatória prevista na alínea l) do n.º 1 do artigo 65.º da LOPTC, por violação das normas secundárias da al. c) do n.º 1 do artigo 24.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 20.º, ambos do CCP.
  12. A Lei 27-A/2020 (artigo 7.º) procedeu à alteração do artigo 48.º, n.º 1, da LOPTC, tendo, doravante, ficado dispensados de fiscalização prévia os contratos referidos nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 46.º da LOPTC, de valor inferior a €750.000,00; trata-se de uma verdadeira norma-cavaleiro, já que altera em termos permanentes o artigo 48.º, n.º 1, da LOPTC.
  13. Do atrás referido, resulta que, atualmente, e desde 25Jul2020, as minutas de contratos, de valor inferior a €750.000,00, não estão sujeitas a fiscalização prévia, e a respetiva execução financeira sem submissão ao Tribunal de Contas, para aquele efeito, não integra infração financeira (por via da conjugação dos artigos 45.º, n.º 1, 46.º, nºs 1, alínea c) e 2, 48.º, redação atual, e 65.º, n.º 1, alínea h), todos da LOPTC).
  14. Impõe-se, por isso, fazer acionar o princípio da aplicação retroativa da lei penal concretamente mais favorável consignado no artigo 29.º, n.º 4, da CRP, válido para os demais domínios sancionatórios, bem como o n.º 4 do artigo 2.º do Código Penal, aplicável por força do disposto no n.º 4 do artigo 67.º da LOPTC, o que determina a absolvição dos Demandados, por carência superveniente do elemento objetivo da infração por que vinha acionado.
  15. Mostra-se preenchido o fundamento para o ajuste direto com base na alínea b) do n.º 1 do artigo 25.º do CCP, se a empreitada, como é o caso dos autos, se destinou a instalar um laboratório para fins de Investigação e Desenvolvimento, se a realização de tais obras não se destinou à obtenção de lucros ou a amortizar o custo dessa atividade e se o seu valor for inferior ao limiar previsto no artigo 474.º, n.º 3, alínea a), do CCP, que é de € 5 350 000.
  16. Os Demandados, ao autorizarem a abertura de dois procedimentos, nos valores, cada um, de aproximadamente 75.000,00€, num espaço de 19 dias, com o mesmo objeto contratual – aquisição de sistemas de segurança contra incêndios – e na sequência e por causa da notificação da ANPC de que iria fazer inspeções extraordinárias às condições de segurança contra incêndios dos edifícios que compõem os Polos da Universidade, agiram livre, voluntária e conscientemente, tendo previsto como consequência necessária da sua conduta o fracionamento artificial do valor do contrato, assim, evitando o recurso a um procedimento concursal, o que não era permitido por lei, e, apesar disso, prosseguiram com tal conduta.
    Agiram, por isso, com dolo necessário.
  17. Do n.º 3 do artigo 111,º do RGIES resulta que às Instituições de Ensino Superior Públicas só é permitido efetuar contratos de seguros cobertos por receitas próprias nas situações previstas naquele artigo, estando fora da sua previsão os contratos de seguro de responsabilidade civil profissional de que sejam segurados, entre outros, os membros do CG de uma IES pública, por danos resultantes de ações ou omissões por aqueles praticados (incluindo os danos decorrentes da prática de infrações financeiras reintegratórias), no exercício das suas funções e por causa desse exercício.
  18. Não existe, por isso, norma habilitante que permita a celebração daqueles contratos de seguro, o que, só por si, constitui obstáculo a que se possa autorizar despesa com essa finalidade.
  19. Em reforço do afirmado em 17. e 18., há ainda outros argumentos, a saber: (i) as fundações públicas com regime de direito privado, como é o caso da universidade em causa, são pessoas coletivas de direito público de tipo fundacional e integram a administração indireta do Estado, fazendo parte do perímetro orçamental público, na categoria de serviços e fundos autónomos do Estado; (ii) apesar de disciplinadas pelo direito privado, no que a alguns domínios da sua gestão se reporta, são-no apenas na medida em que tal não seja incompatível com a sua sujeição geral ao direito público, designadamente à prossecução do interesse público; (iii) a sujeição das universidades-fundação ao regime de direito privado, no que respeita à sua gestão financeira, patrimonial e de pessoal, é apenas um instrumento para melhor prosseguir a sua missão, designadamente a formação cultural, artística, tecnológica e científica dos seus estudantes, num quadro de referência internacional, ou seja, de melhor prosseguir o interesse público de que são veículos; (iv) as receitas das universidades-fundação, mesmo quando próprias, são dinheiros públicos, por se tratarem de receitas de uma entidade pública destinada à prestação do serviço público afeto à sua missão; (v) e sendo as receitas próprias receitas públicas, não pode a universidade utilizar estas para fins diferentes dos previstos no artigo 111.º, n.º 3, do RGIES, designadamente para proteger interesses jurídicos privados dos membros do CG (vi) como IES pública, a universidade está sujeita às vinculações dos n.º 1 e 2 do artigo 266.º da Constituição, entre as quais a da subordinação estrita à lei e, consequentemente, ao princípio da legalidade; (vii) constitui, assim, a lei não apenas o limite, mas, sobretudo o fundamento da atividade da universidade, não podendo esta, neste concreto domínio (contratação de seguros), atuar senão nos casos nela previstos e no sentido e medida por ela estabelecidos.
  20. Os Demandados, enquanto membros do Conselho de Gestão, ao solicitarem um parecer jurídico sobre a possibilidade de contratarem aqueles seguros (vd. ponto 17. deste Sumário), antes de deliberarem tal contratação, atuaram com o cuidado exigível, esclarecendo-se sobre a legalidade da contratação;
  21. As dúvidas jurídicas que aquele parecer suscita ou podia suscitar só alguém com formação jurídica podia desencadear, sendo que os Demandados têm formação na área das ciências positivas e das humanidades.
  22. Daí que a falta de consciência da ilicitude, por parte dos Demandados, não seja reveladora de uma atitude ético-pessoal de indiferença perante o dever-ser jurídico-infracional, tendo tal falta ou erro [não censurável] o efeito de uma causa de exclusão da culpa.
  23. Assim, não obstante a qualidade dos Demandados (membros do CG de uma Universidade), as circunstâncias que rodearam a prática do ato ilegal são de molde a considerar o erro sobre a ilicitude não censurável, o que implica a sua absolvição, por se verificar uma causa de exclusão da culpa (artigo 17.º do Código Penal aplicável ex vi do n.º 4 do artigo 67.º da LOPTC).

 

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