REVISTA DO TRIBUNAL DE CONTAS
CONTROLO PRÉVIO E CONCOMITANTE
 

ACÓRDÃO N.º 26/2021 – 1ªS/SS
2021-11-23
Processo n.º 1475/2021

Relator: Conselheiro Nuno Miguel P. R. Coelho

DESCRITORES

ACORDO QUADRO / ALTERAÇÃO DO RESULTADO FINANCEIRO POR ILEGALIDADE / ANULABILIDADE / CONCURSO INTERNACIONAL / CONTRATO DE EMPREITADA / FISCALIZAÇÃO PRÉVIA / NULIDADE / PREÇO BASE / PRINCÍPIO DA CONCORRÊNCIA / PRINCÍPIO DA TRANSPARÊNCIA / PROCEDIMENTO PRÉ-CONTRATUAL / PUBLICIDADE DE CONCURSO / RECUSA DE VISTO / RESTRIÇÃO DE CONCORRÊNCIA / VALOR DO CONTRATO.
 

SUMÁRIO

  1. Quando a entidade fiscalizada submete à consideração e julgamento deste Tribunal de Contas (TdC) um determinado contrato singular que foi celebrado ao abrigo de um acordo-quadro (AQ), de conteúdo fechado ou cariz individual, em conjunto ou individualmente no que respeita aos demais contratos singulares assim relacionados, não deixa também de incluir este mesmo acordo quadro nessa verificação, por arrastamento necessário do seu próprio conteúdo.
  2. À luz da jurisprudência afirmada no recente acórdão deste TdC com n.º 18/2021 de 7/7/2021, processo n.º 895/2021, podemos definir os “acordos-quadro individuais” ou de “conteúdo fechado” como “os contratos celebrados entre uma entidade adjudicante e um único adjudicatário com vista a disciplinar relações contratuais futuras a estabelecer ao longo de um determinado período de tempo, mediante a fixação antecipada dos termos dos contratos a celebrar ao seu abrigo bem como de todos os aspetos relativos à respetiva execução (artigos 251.º e 252.º, n.º 1, al. a), do Código dos Contratos Públicos (CCP))”.
  3. A abordagem dos acordos-quadro que está sempre subjacente aos contratos individuais celebrados à sombra daqueles faz parte integrante, assim, do objeto do processo e inclui-se na ratio decidendi do julgamento deste caso concreto.
  4. Daí que a circunstância de o AQ individual ter sido anteriormente considerado como não sujeito a fiscalização prévia por parte deste TdC, enquanto instrumento prévio, o qual não deixa de conformar do ponto de vista substancial e formal o contrato relativamente ao qual pede que o tribunal conceda o visto, não limita, em medida alguma, o poder jurisdicional deste mesmo TdC para conhecer, agora, todas as questões de legalidade relevantes para efeitos do artigo 44.º, n.º 3, da Lei de Organização e do Processo do Tribunal de Contas (LOPTC), nomeadamente, ilegalidades no procedimento de formação daquele AQ singular suscetíveis de contaminar a legalidade do contrato celebrado ao seu abrigo.
  5. O AQ não constitui um procedimento pré-contratual. A celebração de um AQ ocorre após a realização de um procedimento pré‐contratual, mas não se confunde com ele, sendo o AQ o resultado da realização desse procedimento. Um procedimento dotado de especificidades e que projeta a sua eficácia não apenas em relação ao AQ, como ainda em relação aos contratos celebrados ao abrigo daquele, sem prejuízo de estes últimos serem precedidos de formalidades procedimentais pré‐contratuais próprias e específicas.
  6. As referências ao valor do contrato e ao preço-base a contratar assumem, assim, nos acordos-quadro, uma importância essencial, pois elas serão o definidor não só do alcance económico do acordo a estabelecer, num funcionamento saudável do mercado, como também do volume jurídico, financeiro e material que estará contido nos contratos a celebrar no seu âmbito.
  7. Daqui resulta que o facto de se exigir à autoridade adjudicante que seja parte no AQ que indique naquele, ab initio, isto é, nas peças procedimentais mais relevantes e também na publicitação do valor contratual, a quantidade e o valor máximo das prestações que esse acordo cobrirá concretiza a proibição de recorrer aos acordos‑quadro de forma abusiva ou de modo a impedir, restringir ou falsear a concorrência, como se tem assumido na jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia.
  8. Existe de facto uma violação de regras procedimentais por parte da adjudicante ao não ter feito constar no anúncio de publicitação da intenção de celebrar um AQ o valor global estimado do contrato a celebrar e ao conter discrepâncias quanto ao valor do contrato e do preço base nas demais peças procedimentais, em violação clara do disposto, conjugadamente, nos artigos 17.º, 4; 18.º, 47.º, n.ºs 2 e 3; 252.º, n.º 1, alínea a), e 2, e 253.º, n.ºs 1 e 2, do CCP, em adequação ao direito da União Europeia e aos princípios da concorrência e da transparência salientados no artigo 1.º-A, n.º 1, do CCP.
  9. Nessa certeza, há que concluir que, por via disso mesmo, a escolha do procedimento em concreto adotado (cfr. artigo 18.º do CCP) não foi realizada em correspondência com o valor real do AQ respetivo, o que afetou, também assim, a adjudicação por ajuste direto do contrato singular de empreitada celebrado ao abrigo daquele e aqui sujeito a fiscalização prévia, na linha do acima defendido.
  10. A falta do procedimento legalmente exigível, nos termos do artigo 161.º, n.º 2, al. l) do Código do Procedimento Administrativo (CPA), determina a nulidade do referido procedimento e, consequentemente, constitui fundamento de recusa de visto, nos termos previstos na alínea a) do n.º 3 do artigo 44.º da LOPTC.
  11. No n.º 2 do artigo 253.º do CCP encontramos uma delimitação do volume dos contratos celebrados ao abrigo de um AQ e a escolha do procedimento deste último, por correspondência ao somatório dos respetivos preços contratuais, norma delimitadora essa que funcionará como regra-travão (ex ante) e não como mero critério subsidiário ou residual para aferição do valor do próprio AQ na sua fase de execução, isto é, a posteriori.
  12. Tendo em conta a sistemática e a teleologia desta norma entende-se que a estatuição da mesma não proíbe em abstrato concurso internacional relativo à formação de acordo quadro com valor total superior a 5.350.000 € (dividido ou não em lotes), mas, apenas, clarifica que também quanto a esse procedimento de formação contratual se deve atender ao limiar acima do qual o anúncio dos procedimentos deverá ser obrigatoriamente objeto de publicitação no JOUE.
  13. Sendo que o anúncio do concurso deve ser objeto de publicação no JOUE, atendendo ao disposto no artigo 18.º (a escolha do procedimento a adotar deve ser feita tendo por base no valor do contrato a celebrar), no artigo 17.º, n.º 4 (o valor do acordo-quadro é de 68.617.940,00€) e no artigo 19.º, alíneas a) e b) (este último a contrario, conjugado com o artigo 474.º, n.º 3, alínea a)), por remissão do artigo 253.º, n.º 1, todos estes preceitos legais do CCP.
  14. Como se destaca do disposto no n.º 1 do artigo 283.º-A do CCP, a falta de publicação no JOUE de um procedimento de formação de um contrato é culminada com o vício da anulabilidade, sem que persistam neste caso as situações de saneamento de tal vício (n.os 2 e 3 do mesmo preceito legal).
  15. A preterição dos procedimentos pré-contratuais legalmente devidos, consubstancia uma prática suscetível de alterar o resultado financeiro do contrato, o que, nos termos da alínea c) do n.º 3 do supracitado artigo 44.º da LOPTC, constitui, igualmente, motivo de recusa de visto dos referidos contratos.

 

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