DESCRITORES
ADJUDICAÇÃO / ALTERAÇÃO DO RESULTADO FINANCEIRO POR ILEGALIDADE / BEM MÓVEL / CADUCIDADE / CONTRATO DE AQUISIÇÃO DE BENS / CONTRATO DE EMPREITADA DE OBRAS PÚBLICAS / ESPECÍFICAÇÃO TÉCNICA / HABILITAÇÃO A CONCURSO / INTERESSE PÚBLICO / NULIDADE / OBJETO DO CONTRATO / PRINCÍPIO DA CONCORRÊNCIA / PRINCÍPIO DA IGUALDADE / RECUSA DE VISTO / RESTRIÇÃO DE CONCORRÊNCIA.
SUMÁRIO
- O regime de recursos estabelecido na Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas (LOPTC), designadamente no âmbito da fiscalização prévia, contém determinadas especificidades que o diferenciam do modelo de apelação restrita estabelecido no processo civil, o qual, ainda assim, possui, ele próprio, algumas relevantes exceções como é inerente à simplificação inerente a um modelo e que aqui se estabelece como regime normativo supletivo nos termos do Art.º 80.º da mesma LOPTC.
- Segundo esse modelo os recursos constituem-se, à partida, como meios processuais de impugnação de anteriores decisões judiciais e não ocasião para julgar questões novas. Em princípio, não pode alegar-se matéria nova nas instâncias superiores, em recurso, não obstante o tribunal ad quem dever apreciar as questões de conhecimento oficioso ou apreciar a matéria de facto de forma crítica, ativa e ponderada, se necessário com a determinação da sua modificabilidade – assim, conjugadamente, os Art.ºs 608.º, n.º 2, parte final, 635.º e 662.º, todos do Código de Processo Civil (CPCivil). Esta mesma razão dita a proibição de princípio de apresentação e junção de documentos novos na fase de recurso, salvo nas situações a que se refere o n.º 1 do Art.º 651.º do CPCivil.
- As especificações técnicas consubstanciam, no caso dos contratos de aquisição de bens móveis, o elenco de características exigidas a um produto, tais como os níveis de qualidade, desempenho, avaliação do produto, segurança, dimensões, níveis de desempenho ambiental, etc.
- Por conseguinte, a entidade adjudicante deve reconduzir ao caderno de encargos a descrição detalhada do bem que pretende adquirir, especialmente, dos termos de desempenho e dos requisitos funcionais, por forma a permitir que os concorrentes identifiquem de modo claro e inequívoco o objeto do contrato (cfr. Art.º 49.º, n.ºs 1, 2 e 3 do Código dos Contratos Públicos [CCP]).
- Esta identificação clara das especificações técnicas, bem como o concreto modo como estas são apresentadas, constituem ainda uma garantia de igualdade de acesso dos operadores económicos ao procedimento de contratação, e não devem criar obstáculos injustificados ao desenrolar da concorrência no mercado que é convocado a oferecer o produto que a entidade adjudicante pretende adquirir (cfr. Art.º 49.º, n.ºs 4 e 8, do CCP).
- A definição das especificações determinado equipamento ou produto pode sempre constituir um meio de distorção da concorrência, na medida em que a entidade adjudicante possa, por exemplo, definir, sem motivo justificado, características de um produto que só um operador económico comercializa ou produz.
- E esta regra de proibição só não se aplica, a título excecional, quando não é possível uma descrição suficientemente precisa e inteligível do objeto do contrato, caso em que se exige que a referência seja acompanhada da menção «ou equivalente». Esta proibição estabelecida pelo n.º 8 do citado Art.º 49.º da CCP, visa, assim, garantir a igualdade de acesso aos procedimentos concursais.
- A margem de discricionariedade das entidades públicas na conformação das suas relações contratuais tem como limite legal a definição do interesse público realizada pela própria norma legal, que não conforma apenas requisitos mínimos e pode apresentar limites máximos.
- Pelo que se terá de concluir, como no acórdão recorrido, que uma especificação técnica como a que a entidade adjudicante fez constar no Programa Preliminar, ao exigir um sistema de deteção de incêndios através de câmaras de espectrometria que está patenteado em Portugal e no estrangeiro apenas para uma entidade, não é compatível com o princípio da igualdade entre concorrentes e com o princípio da máxima abertura à concorrência.
- Esta ilegalidade contratual – ligada com a restrição à concorrência derivada da exigência da tecnologia das câmaras espectrométricas e da marca registada –, não se consubstancia como uma nulidade, mas, sim enquanto anulabilidade, pois a violação do disposto no n.º 4 do Art.º 49.º do CCP, e dos princípios da contratação pública (Art.º 1.º-A do mesmo CCP), terá sempre como vício negativo correspondente o regime regra da anulabilidade – cfr. Art.º 284.º, n.º 1, do CCP –, não estando prevista legalmente a invalidade major para esta situação.
- A habilitação primacial ou qualificação do adjudicatário, numa empreitada de obras públicas, pode ser estabelecida como um limite qualitativo à legitimação técnica e profissional para adjudicar certos trabalhos e de recurso à habilitação de terceiros (subcontratantes), o que não deixa de constituir, nesse sentido, um limite ao recurso à subcontratação por ausência de habilitação própria.
- Por ser assim, a possibilidade de aproveitamento da capacidade de terceiros não pode ser ilimitada, pois de outra forma estar-se-iam a pôr em causa os motivos que levaram à necessidade de demonstração da habilitação do adjudicatário.
- Nesse sentido, é irrelevante que se conheça a identidade e habilitação do terceiro subcontratado logo desde a fase das propostas ou apenas na fase de habilitação posterior à adjudicação – em qualquer dos casos, o objetivo de evitar que se adjudiquem empreitadas de obras públicas a empresas não detentoras de habilitação para os trabalhos mais expressivos apenas se alcança através da exigência de tal habilitação à cocontratante (que, repete-se, depois será livre de recorrer à subcontratação, dentro dos limites quantitativos estabelecidos pela lei)”.
- Este entendimento jurisprudencial, aqui sedimentado, nada tem de “criativo” e demonstra-se compatível com os valores e os interesses públicos aqui em confronto – tanto no respeitante ao interesse público da idoneidade técnica e financeira de quem se apresenta como candidato a realizar uma empreitada pública como no que concerne ao princípio do aproveitamento da habilitação de terceiras entidades como defesa da concorrência e da abertura das pequenas e médias empresas (PMEs) ao mercado da contratação pública –, sendo que a mesma posição se tem como a mais adequada não só com a natureza e a finalidade da fiscalização prévia aqui em atuação como também com a análise, no seu todo, do plano da ilicitude e das suas consequências no plano da invalidade negocial.
- Conclusão que se escora na análise normativa-legal multi-nível que aqui é convocada (europeia e nacional), na abordagem mais aprofundada dos interesses e valores em confronto nesta vertente económica e jurídica e na verificação mais detalhada dos argumentos da jurisprudência europeia e nacional que tem sido produzida neste âmbito.
- A falta de apresentação de documentos de habilitação no prazo fixado no programa de procedimento e de acordo com as exigências legais, todavia, não determina, só por si, a caducidade da adjudicação, como concluiu o acórdão recorrido.
- Pelo que não se poderá concluir pela demonstração da inexistência da adjudicação, o que seria, por seu turno, fundamento da nulidade do contrato por carecer de um elemento essencial (cfr. Art.ºs 284.º, n.º 2 do CCP, e 133.º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo).
- Mas a verdade é que esta invalidade, esta nulidade, não se encontra assim configurada pela lei. Ela terá de passar necessariamente por uma declaração de caducidade, após as interpelações para apresentar dos documentos de habilitação ou para justificar a sua não apresentação, tal como se consagra expressamente nos n.ºs 2 e 3, do Art.º 86.º do CCP.
- Nos termos conjugados dos Art.ºs 86.º, n.º 2 e 3 e 187.º, n.º 3 e 4, ambos do CCP, a caducidade da adjudicação só ocorre após a audiência prévia do adjudicatário e após a prolação de uma decisão da entidade adjudicante que decida pela referida imputabilidade da causa da não adjudicação ao adjudicatário.
- Ora, a previsão destes passos procedimentais diferenciados e necessários para a ocorrência da situação geradora desta invalidade, correspondente à nulidade, não deixa de conferir a esta mesma nulidade um caráter específico ou atípico, que suscita a questão do seu regime jurídico e, do mesmo modo, a sua qualificação para as finalidades de apuramento da sua legalidade para efeitos de fiscalização prévia e de concessão ou não do visto pelo Tribunal de Contas.
- Nesta situação, tendo em conta o sentido teleológico da fiscalização prévia a cargo do Tribunal de Contas e a distinção essencial de outras situações de nulidade atípica que fundamentam do ponto de vista necessário (ou absoluto) de recusa de visto, na aplicação estrita da alínea a), do n.º 3 do Art.º 44.º da LOPTC, temos por mais adequado proceder a uma degradação desta específica ilegalidade, em vista do desvalor aqui em causa e na atenção à composição dos diversos interesses aqui protegidos, fazendo-lhe corresponder o regime aplicável às demais ilegalidades que não impliquem a nulidade (no sentido estrito, aqui incluindo as anulabilidades), que alterem ou possam alterar o resultado financeiro do contrato, enquanto fundamento de recusa de visto mas com possibilidade de concessão de visto condicionado à formulação de recomendações, tal como se pode retirar da conjugação da alínea c) do n.º 3 e do n.º 4, do mesmo Art.º 44.º da LOPTC.
- Esta última posição, tem em devida conta que na presente situação a invalidade ou ilegalidade em causa só se consolida como nulidade após a sequência procedimental indicada (uma declaração de caducidade, após as interpelações para apresentar dos documentos de habilitação ou para justificar a sua não apresentação, com a análise do comportamento do adjudicatário), o que a diferencia, por exemplo, de outras situações, como a da falta de fundos disponíveis para suportar a despesa que gera a nulidade do contrato e do compromisso, em que o que se perspetiva é uma eventual sanação jurisdicional, portanto a posteriori, da nulidade verificada, o que sairia do quadro de competência jurisdicional (prévia) do próprio Tribunal de Contas.
- Por outra via, esta solução será aquela que é melhor suportada pela ideia de uma aplicação do direito que valoriza o sistema de princípios da contratação pública e que se enquadra na linha de balanceamento desses princípios com uma forte índole de justificação procedimental.
- E que, ao mesmo tempo, não descura a ponderação do desvalor presente na ilegalidade praticada (a falta de apresentação de documentos de habilitação no prazo fixado no programa de procedimento e de acordo com as exigências legais) de acordo com a sua própria repercussão financeira para o contrato de empreitada em questão (que altere ou possa alterar o respetivo resultado financeiro), introduzindo a possibilidade de recusa de visto ou de concessão do visto mediante advertência da necessidade de suprir ou evitar no futuro essa omissão, em conformidade com os parâmetros normativos já salientados da alínea c) do n.º 3 e do n.º 4, ambos do Art.º 44.º da LOPTC.
- De acordo com a jurisprudência constante deste Tribunal de Contas, para valorar a aptidão da ilegalidade se repercutir no resultado financeiro deve se ponderado o relevo da mesma na fase procedimental em que ocorre e da específica etapa na decisão final, a adjudicação do contrato, não se exigindo a demonstração de um nexo causal entre o vício e um imediato impacto financeiro, daí se falar de uma aptidão ou de um perigo abstrato-concreto de impacto financeiro.
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