REVISTA DO TRIBUNAL DE CONTAS
PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA
 

PARECER DA PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA N.º 19/2023
2023-08-10

Relator: José Joaquim Arrepia Ferreira

DESCRITORES

AUTONOMIA PRIVADA – CLÁUSULA DE REVERSÃO – ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA – EXTINÇÃO – FIM NÃO LUCRATIVO – FIM SOCIAL – FUNDAÇÃO PRIVADA – INFLUÊNCIA DOMINANTE – INSTITUIDOR – NEGÓCIO JURÍDICO UNILATERAL – PATRIMÓNIO – PESSOA COLETIVA PÚBLICA – PRINCÍPIO DA BOA FÉ – SETOR SOCIAL

 

SUMÁRIO

  1. As fundações são pessoas coletivas, sem fim lucrativo, dotadas de um património suficiente e irrevogavelmente afetado à prossecução de um fim de interesse social (artigo 3.º, n.º 1, da Lei-Quadro das Fundações);

  2. As fundações privadas são fundações criadas por uma ou mais pessoas de direito privado, em conjunto ou não com pessoas coletivas públicas, desde que estas, isolada ou conjuntamente, não detenham sobre a fundação uma influência dominante (artigo 4.º, n.º 1, alínea a), da Lei-Quadro das Fundações);

  3. No anteprojeto da Lei-Quadro das Fundações, propunha-se expressamente, em caso de extinção da fundação, a proibição de reversão dos bens remanescentes desse património fundacional para os seus instituidores ou familiares e a nulidade das cláusulas de reversão (conforme redações propostas para os artigos 12.º, n.º 4, e 39.º, n.ºs 2 e 3, da Lei-Quadro das Fundações, este último replicado no artigo 194.º-A, n.ºs 2 e 3, do Código Civil);

  4. Propostas que, tendo merecido várias críticas, não vieram a ser vertidas na Proposta de Lei n.º 42/XII/1.ª do Governo, nem acolhidas pelo legislador na Lei-Quadro das Fundações aprovada nem nas alterações introduzidas ao Código Civil, mostrando-se, assim, que foram abandonadas;

  5. Esse abandono constituiu opção do legislador que, por isso, nada incluiu no regime aprovado pela Lei n.º 24/2012, acerca de cláusulas de reversão qualquer norma impositiva, proibitiva, ou de validade ou invalidade;

  6. No regime instituído pela Lei-Quadro das Fundações, aprovada pela Lei n.º 24/2012, de 9 de julho, e subsequentes alterações, como nos regimes que o antecederam – Código de Seabra e Código Civil, aprovado em 1966, até à entrada em vigor de tal Lei-Quadro –, inexiste normativo que especificamente proíba, em caso de extinção da fundação, a reversão do património fundacional remanescente para o instituidor ou familiares;

  7. Todavia, vários dispositivos da Lei-Quadro das Fundações – como os artigos 12.º, n.º 1, primeira parte, 18.º, n.º 1, e 60.º, n.º 3 – e bem assim os artigos 166.º, n.º 2, e 186.º, n.º 2, do Código Civil, manifestam que o instituidor tem a liberdade de estabelecer o destino do património fundacional;

  8. Aliás, a trave mestra do regime legal das fundações que veio a ser aprovado pela Lei n.º 24/2012 «é, naturalmente, o primado do respeito pela vontade do fundador», pretendendo-se, com a Lei Quadro das Fundações «devolver o regime fundacional à sua original natureza altruísta», conforme consta da exposição de motivos da referida Proposta de Lei;

  9. A irrevogabilidade do negócio jurídico de constituição da fundação não sustenta, para além da extinção desta, a irrevogabilidade da afetação patrimonial dos seus bens patrimoniais por constituir um atributo das fundações com vida;

  10. Assim, a fixação no ato institutivo ou nos estatutos de cláusula de reversão dos bens com que o fundador dota a fundação, em caso de extinção desta, não afronta tal irrevogabilidade nem é adequado a afrontá-la;

  11. O fundador tem a liberdade para destinar a dotação inicial patrimonial ou dos bens que por sub-rogação lhe sucedam, existentes aquando da extinção da fundação a seu favor ou dos seus sucessores em geral, legalmente admissível, a menos que se evidencie, atendendo designadamente ao teor dessas cláusulas, e a outros elementos de prova, designadamente extra-documentais, que a vontade real era a satisfação de interesses privados em detrimento do interesse social;

  12. Aliás, os modos de atuação, no exercício do direito de instituição de fundação, contrários aos princípios gerais do Direito, como ao princípio da proibição do enriquecimento indevido, aos ditames da boa-fé, à proibição do abuso de direito e da fraude à lei ou a atuação de má-fé, são inadmissíveis;

  13. Não é, assim, admissível que a reversão enriqueça o fundador com os subsídios e ajudas que a fundação recebeu ao longo da sua existência (do sector público), nem com os bens ou direitos que outras pessoas (do sector privado) tenham atribuído à fundação;

  14. Tem o fundador ainda a obrigação, por força dos artigos 12.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Lei-Quadro das Fundações e 186.º, n.º 2, do Código Civil, de escolher, entre entidades que servem o interesse social, como destinatários do restante do património remanescente, se o houver.

 

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