REVISTA DO TRIBUNAL DE CONTAS
CONTROLO PRÉVIO E CONCOMITANTE
 

ACÓRDÃO N.º 4/2022 – 1ªS/PL
2022-01-25
Recurso Ordinário n.º 5/2021
Processo n.º 1446/2021

Relator: Conselheira Sofia David

DESCRITORES

ASSINATURA / FORMALIDADE ESSENCIAL / FORMALIDADE NÃO ESSENCIAL / PROPOSTA / REGIME DE SUPRIMENTO / TRADUÇÃO LEGALIZADA.
 

SUMÁRIO

  1. São critérios para a distinção entre formalidades essenciais e não essenciais, no âmbito da contratação pública: (i) a circunstância da própria lei qualificar, direta ou indiretamente, uma dada formalidade como não essencial; (ii) a circunstância da formalidade cumprir – ou não – um fim substancialmente relevante; (iii) a verificação – atendendo ao bem jurídico que a norma visa proteger – de que a ilegalidade cometida nenhuma influência teve no resultado final, que foi identicamente alcançado; (iv) e a circunstância da omissão da formalidade não colidir com os princípios gerais que regem os procedimentos concursais, no seu âmago ou reduto mínimo;
  2. Devem presumir-se como essenciais: (i) as formalidades exigidas pelo bloco legal – pelo legislador e pelas normas concursais; (ii) as formalidades relativamente às quais o legislador comina a sua inobservância com a exclusão da candidatura ou da proposta do concorrente; (iii) as formalidades inseridas em procedimentos que seguem um rito muito rígido, que apresentam momentos procedimentais preclusivos;
  3. O art.º 72.º, n.º 3, do Código de Contratos Públicos (CCP) restringe-se às irregularidades de forma não essenciais, isto é, às irregularidades relativas à forma ou ao modo de apresentação das propostas, excluindo-se as irregularidades de forma que se reconduzam, identicamente, a irregularidades materiais ou substanciais, maxime as que sejam fundamento legal de exclusão das propostas;
  4. O artigo 72.º, n.º 3, do CCP, remete para um regime de regularização ou de suprimento, semelhante ao adotado no art.º 108.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, que se arreda da teoria jurídico-administrativa do aproveitamento do ato administrativo através da degradação das formalidades essenciais em não essenciais;
  5. A preterição das formalidades procedimentais exigidas em sede de contratação pública, se reconduzidas a irregularidades de forma ou de modo de apresentação da proposta, que constituam formalidades não essenciais, não devem dar lugar imediato à exclusão das candidaturas e propostas, devendo as Entidades Adjudicantes, neste caso, lançar mão ao poder-dever constante do artigo 72.º, n.º 3, do CCP;
  6. Se ocorrer a preterição de formalidades essenciais, ou que se presumem essenciais, v.g., a preterição de formalidades exigidas pela lei e legalmente sancionadas com a exclusão da proposta, a Administração pode lançar mão à dogmática que se desenvolveu acerca do aproveitamento do ato administrativo e da degradação das formalidades essenciais em não essenciais. Tal dogmática vale no âmbito da contratação pública e em sede de irregularidades constantes das propostas dos concorrentes, considerando-se aproveitável o ato jurídico que consubstancia a (apresentação da) proposta;
  7. Essa possibilidade resulta, de imediato, de um princípio de coerência interna do direito administrativo ou do sistema jurídico-administrativo. Para além disso, essa aplicação ou extensão de regime decorre, também, dos princípios da igualdade concorrencial, da boa-fé da declaração negocial e da proporcionalidade, constituindo uma obrigação do intérprete-aplicador da lei;
  8. Porém, o recurso pela Administração à teoria do aproveitamento do ato administrativo e da degradação das formalidades essenciais em não essenciais, para efeitos de salvar uma proposta irregular ou de evitar o efeito excludente dessa irregularidade, legalmente determinado, terá de ser encarado como uma situação de exceção, uma situação limite, para casos clamorosos, em que haja uma ofensa evidente e manifesta aos princípios da igualdade concorrencial, da boa-fé da declaração negocial, da proporcionalidade e do interesse público financeiro e, de outro lado, não se antevejam sacrificados, no seu reduto essencial, os princípios em confronto ou a harmonizar com aqueles, isto é, os princípios da igualdade e da concorrência – enquanto princípios alicerçados em aspetos formais – da transparência, da imparcialidade, da publicidade, da estabilidade, da intangibilidade das propostas, da segurança jurídica e da confiança;
  9. A ficha técnica do produto, sendo um documento exigido no programa do procedimento, que contém os termos ou condições relativas a aspetos da execução do contrato não submetidos à concorrência pelo caderno de encargos, aos quais a Entidade Adjudicante pretende que o concorrente se vincule, integra a proposta apresentada pelo concorrente;
  10. A formalidade da apresentação da ficha técnica do produto redigida em português, ou não o sendo, da apresentação de uma tradução devidamente legalizada, acompanhada de uma declaração de prevalência, estando determinada como obrigatória – na lei e nas peças concursais – e sendo, também, a sua inobservância cominada, em termos expressos, com a exclusão da proposta do concorrente, deve ter-se como uma formalidade essencial;
  11. Tal formalidade é também uma formalidade ad substantiam, pois através da mesma visa-se garantir que o concorrente se vincula relativamente às características e especificações que constam daquela ficha, quer na parte escrita em português, quer na parte escrita em idioma estrangeiro, o que se faz por via da tradução apresentada e da declaração de prevalência;
  12. No caso, a não entrega da tradução e da declaração de prevalência impediu que o júri ficasse a conhecer de forma perfeita ou completa a proposta apresentada;
  13. A obrigação legal da proposta ser entregue de forma perfeita num dado momento procedimental, claramente definido, visa informar o júri de forma total e completa da intenção do concorrente contratar respeitando certos atributos, termos e condições. Visa, ainda, salvaguardar os princípios da concorrência, da igualdade e da transparência e o subprincípio da estabilidade ou da imutabilidade das propostas;
  14. Logo, a preterição de tal formalidade não se enquadra no âmbito do artigo 72.º, n.º 3, do CCP;
  15. 15. Se, no caso concreto, ficou provado que a formalidade essencial que foi preterida não ficou alcançada por outro meio, não pode tal formalidade essencial degradar-se em não essencial para efeitos de se salvar a proposta apresentada;
  16. A assinatura - nomeadamente a assinatura eletrónica qualificada – de um documento da proposta que contém termos ou condições relativas a aspetos da execução do contrato não submetidos à concorrência pelo Cadernos de Encargos, que não são replicados em outros documentos, relativamente aos quais a Entidade Adjudicante pretende que o concorrente se vincule, quando prevista como obrigatória pela lei e pelas peças concursais, que também cominam a respectiva inobservância com a exclusão da proposta do concorrente, é uma formalidade essencial;
  17. A falta (total) de assinatura de um documento da proposta impede a vinculação do concorrente ao aí inscrito;
  18. Se o documento da proposta que não está individualmente assinado é composto por 4 diferentes folhas de Excel, que pressupõem um preenchimento relativamente complexo de várias linhas e colunas, sendo que duas daquelas folhas tem, cada uma, mais de 130 linhas para preencher e duas colunas, tal significa que uma eventual substituição desse documento por outro assinado, depois do termo do prazo da apresentação das propostas, irá implicar muito mais que um mero controlo de forma ou de aparência pelo júri do concurso e pelos restantes concorrentes;
  19. Nessa mesma medida, a preterição da formalidade relativa à assinatura individual de tal documento – que, no caso, se exigia uma assinatura eletrónica qualificada – é uma formalidade essencial, que não cabe na previsão do artigo 74.º, n.º 3, do CCP e que não é passível de suprimento por recurso à teoria da degradação das formalidades essenciais em não essenciais.

 

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