REVISTA DO TRIBUNAL DE CONTAS
CONTROLO PRÉVIO E CONCOMITANTE
 

ACÓRDÃO N.º 10/2022 – 1ªS/SS
2022-03-15
Processo n.º 2440/2021

Relator: Conselheiro Miguel Pestana de Vasconcelos
* “com declaração de voto”

DESCRITORES

ATRIBUTO / DOCUMENTO COMPROVATIVO DO ATRIBUTO / FORMALIDADES ESSENCIAIS / FORMALIDADES NÃO ESSENCIAIS / PRINCÍPIO DA BOA-FÉ / PRINCÍPIO DA BOA ADMINISTRAÇÃO / SUPRIMENTO DE IRREGULARIDADES DAS PROPOSTAS / TEORIA DA DEGRADAÇÃO DAS FORMALIDADES ESSENCIAIS EM NÃO ESSENCIAIS / TEORIA DAS FORMALIDADES ESSENCIAIS.
 

SUMÁRIO

  1. Atributo e documento o comprova não são a mesma realidade. A irregularidade ou falta de cumprimento dos requisitos formais do documento comprovativo não pode ser equiparada à ausência do atributo – o atributo pode estar mencionado, muito embora o requisito formal para a sua materialização num documento possa ter sido incumprido ou deficientemente cumprido.
  2. O princípio da boa fé, como forma de tutelar a materialidade, é especialmente acentuado no Direito Administrativo, tanto no Código do Procedimento Administrativo (artigo 10.º CPA), como no Código dos Contratos Públicos (artigo 1.º-A CCP), que o consagram expressamente no quadro dos princípios a observar, sendo por isso, também códigos principiológicos.
  3. A exclusão de propostas por motivos simplesmente formais que em nada afetem, nem a estabilidade das propostas, nem a igualdade entre as partes, levando a que propostas melhores sejam afastadas com manifesto prejuízo do erário público e da qualidade dos serviços prestados não deve, à luz, nem do princípio da boa fé, nem do princípio da boa administração (artigo 5.º CPA) ser aceite.
  4. O Código dos Contratos Públicos, na revisão de 2017, criou, através da nova redação dada ao artigo 72.º, n.º 3, CCP, um mecanismo de suprimento das irregularidades das propostas (artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 111-B/2017, de 31 de agosto), visando a “recuperação da possibilidade de sanar a preterição de formalidades não essenciais pelas propostas apresentadas, evitando exclusões desproporcionadas e prejudiciais para o interesse público”.
  5. Essa alteração foi ditada pela necessidade de se transpor o artigo 58.º da Diretiva n.º 2014/24/UE (do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro, relativa aos contratos públicos e que revoga a Diretiva n.º 2004/18/CE), norma que admite com uma grande amplitude o suprimento de propostas com irregularidades, o que não acontecia na Diretiva n.º 2004/18/CE, que revogou.
  6. Na sua transposição, a lei portuguesa foi mesmo mais longe, porque não se limitou a prever uma simples faculdade do júri, mas prescreveu um verdadeiro dever do júri de solicitar aos candidatos e concorrentes o suprimento das irregularidades das suas propostas.
  7. A razão de ser da lei consiste:
    • em consagrar e delimitar a aplicação do princípio da boa fé, na subvertente da realização da materialidade (i);
    • dar corpo à finalidade da contratação pública, que é a da obtenção das melhores propostas, ao melhor preço (ii);
    • concretizar, neste quadro, a um dos vetores centrais do direito económico europeu em geral, e do direito da contratação pública em particular: a proteção das PME (iii).
  8. A formalidade é não é essencial sempre que possa ser suprida sem se atingir integralidade da proposta, ou seja, se ela for a mesma, uma vez que não que se atinge, assim, o princípio da igualdade e da concorrência.
  9. 9. O que é o caso: a entrega de um certificado em inglês, língua que o júri domina, pode ser suprida pela entrega do mesmo certificado agora traduzido em português, com exatamente o mesmo conteúdo, porque acompanhado de tradução, sendo, por isso, a proposta exatamente a mesma. Não se põe em causa, como é óbvio, quer o princípio da igualdade, quer o da concorrência.
  10. A jurisdição financeira é dotada de um mandato constitucional e uma teleologia específicas: a tutela do erário pública, dos dinheiros públicos.
  11. A perspetiva da jurisdição financeira assume, por essa razão, como decorre amplamente da sua jurisprudência, um caráter marcadamente substancialista, com uma especial atenção ao resultado material financeiro. Não há espaço no direito financeiro para formalismos estéreis que levem em termos de resultado material a um gasto desnecessário de dinheiros públicos no altar do conceitualismo formal.
  12. É por isso vetor fundamental da jurisdição financeira ter em conta as consequências financeiras do ato no que tange à realização da despesa pública, para que sejam obtidos bens e serviços que, sendo idênticos em termos de qualidade, sejam menos onerosos para o erário público.
  13. No caso sub judice, a proposta da concorrente graduada em primeiro lugar é mais elevada em de 38.392€ daquela da concorrente graduada em segundo lugar, porque não se considerou admissível que o júri pedisse, como era seu dever nos termos do art. 72.º, n.º 3 CCP, uma tradução autenticada em português de um certificado que lhe foi entregue em inglês, sem que daí resultasse qualquer alteração da proposta em si. O resultado consiste na perda de 38.992€ de dinheiro público, sem qualquer justificação, o que é totalmente inaceitável.

 

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